Cientistas decodificam sonhos e estão perto de entender a memória

Ainda é cedo, mas já dá para imaginar: você deita à noite, dorme e, quando acorda, na manhã seguinte, tem um relatório dos seus sonhos com detalhes de todas as suas incursões oníricas. Em estudo recente, cientistas japoneses identificaram, com 60% de precisão, o conteúdo visual dos sonhos de voluntários, por meio de exames de […]

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Ainda é cedo, mas já dá para imaginar: você deita à noite, dorme e, quando acorda, na manhã seguinte, tem um relatório dos seus sonhos com detalhes de todas as suas incursões oníricas. Em estudo recente, cientistas japoneses identificaram, com 60% de precisão, o conteúdo visual dos sonhos de voluntários, por meio de exames de ressonância magnética da atividade cerebral. Mais do que uma diversão inusitada, desvendar o território do inconsciente pode ser passo importante para compreender mistérios do cérebro humano, como o processo de memorização e o verdadeiro papel dos sonhos na nossa vida.

Com os resultados positivos, o estudo tornou o tema mais acessível do ponto de vista científico, levando em consideração que o sonho é um objeto complexo e ainda bastante inexplorado na área da neurociência. “O fato é que, até a publicação deste estudo, não havia uma ferramenta objetiva para determinar o conteúdo de um sonho. Isto tornou um tema controverso e subjetivo em algo mais palpável e objetivo”, justifica o neurologista André Felício, pós-doutor pela Universidade da Colúmbia Britânica, do Canadá.

Imagens do cérebro

Publicada na revista Science, a pesquisa foi desenvolvida com auxílio de três voluntários, que tiveram seus sonhos monitorados por meio de exames de ressonância magnética. Enquanto eles dormiam dentro dos scanners, suas atividades cerebrais eram analisadas. Quando o monitor apresentava um determinado sinal, os voluntários eram acordados e solicitados a relatar o que estavam sonhando no estágio inicial de sono.

Esse processo foi repetido mais de 200 vezes com cada pessoa. Terminada essa fase, foi criado um banco de dados, para classificar as imagens descritas pelos voluntários e relacioná-las às imagens correspondentes apresentadas na ressonância magnética funcional. Feito isso, os cientistas também mediram a atividade cerebral dos voluntários enquanto eles estavam acordados e observavam algumas imagens relatadas em seus sonhos. Assim, foi criada uma espécie de léxico que associa sinais do cérebro a imagens.

De acordo com Yoichi Miyawaki, um dos autores do estudo e professor da Universidade de Eletrocomunicações (UEC), em Tóquio, esse conjunto de dados possibilitou treinar “decodificadores”, que aprenderam a relação estatística entre os sinais da ressonância magnética e a presença, ou ausência, dos conteúdos visuais. “Os decodificadores treinados foram capazes de prever conteúdos visuais relatados pelos voluntários, dados os sinais da ressonância magnética durante o sono, com uma precisão significativa”, destaca. O dispositivo decodificou as imagens observadas durante a fase onírica com 60% de precisão.

Próximas etapas

O estudo realizado constitui-se apenas do estágio inicial no domínio dos sonhos. Chegar a 100% de exatidão em sua “leitura” é um dos objetivos dos cientistas japoneses. “Nós não podemos dizer explicitamente quando vamos chegar a 100% de exatidão, mas estamos tentando desenvolver métodos para melhorar a precisão”, relata Miyawaki.

Para isso, serão necessários experimentos noturnos, já que todos os testes até agora foram realizados durante cochilos diurnos. “Um dos passos interessantes será aplicar métodos semelhantes aos sinais da ressonância magnética tomadas durante o sono REM noturno, no qual as pessoas também têm sonhos vívidos”, aponta o professor da UEC.

Assim, espera-se traduzir com maior fidelidade o conteúdo dos sonhos. Além de demonstrar imagens, próximos estudos podem revelar aspectos sensitivos, gustativos e auditivos. “O espectro ampliado das sensações humanas”, salienta Felício. De acordo com Yonekura, se hoje apenas algumas imagens podem ser decifradas, pesquisas futuras poderão viabilizar uma história inteira que a pessoa tenha sonhado.

Aplicações

Conforme Shigueo Yonekura, neurologista especialista em sono pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, os sonhos ainda são um grande mistério da medicina. Mas já se sabe que, muito além de historinhas para contar em rodas de amigos, os sonhos desempenham papel fundamental. “Sabemos objetivamente por experimentos científicos que os sonhos contribuem para fixar a memória na vida cotidiana, o que aprendemos durante o dia, é à noite que fixamos no cérebro o aprendizado, principalmente durante os sonhos, ou seja, na fase REM (sigla em inglês para ‘movimento rápido dos olhos’) do sono”, explica o Diretor do Instituto de Medicina e Sono de Campinas.

Dessa forma, é possível que, ao desvendar a essência dos sonhos, compreendam-se diferentes aspectos da memorização. “Os cientistas têm interesses particulares em conexões entre o sonho e a consolidação da memória. Esperamos que nossos resultados possam ajudar a compreender os mecanismos neurais da memória”, reforça Miyawaki.

Uma possibilidade mais prática em relação ao estudo é apontada por João Ricardo Sato, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC. De acordo com o pesquisador, experimentos como esse podem ser aprimorados para melhorar a qualidade de vida de indivíduos com distúrbios de sono, ansiedade ou stress. “Atualmente já se realiza a decodificação de estados mentais em indivíduos acordados. Se essas mesmas metodologias forem aplicadas para o sono REM, talvez isso traga informações relevantes não apenas sobre a qualidade de sono do individuo, mas também sobre possíveis estados mentais (ansiedade, angústia, etc) durante o sono”, pontua.

A maioria dessas aplicações para a leitura de sonhos deve residir em um futuro não tão próximo. Mesmo assim, é interessante vislumbrar o panorama da área a partir de agora. “O impacto hoje não é grande, mas o impacto futuro é enorme”, afirma Jorge Moll Neto, neurocientista cognitivo e diretor do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. “É um feito neurotecnológico que demonstra uma possibilidade real e sólida: de que o desenvolvimento de ferramentas como essa poderá tornar possível reconstruir em uma tela o que se passa na tela mental de uma pessoa acordada ou dormindo.”

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