Aos 53 anos, deficiente visual realiza sonho de entrar na universidade na Bahia
Aos 36 anos, o baiano Jorge Neris foi diagnosticado com glaucoma. Era a primeira vez que ia ao oftalmologista. Jorge passou por diversos exames, um tratamento doloroso e uma cirurgia para tentar conter a pressão do olho, primeiro em um deles, depois nos dois, até que perdeu totalmente a visão em 2010, pouco depois de […]
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Aos 36 anos, o baiano Jorge Neris foi diagnosticado com glaucoma. Era a primeira vez que ia ao oftalmologista. Jorge passou por diversos exames, um tratamento doloroso e uma cirurgia para tentar conter a pressão do olho, primeiro em um deles, depois nos dois, até que perdeu totalmente a visão em 2010, pouco depois de ter retornado à sala de aula para completar o ensino médio.
O diagnóstico não o impediu de seguir os estudos, e três anos depois, passou no vestibular. A boa notícia chegou agora em setembro, com a lista de aprovados em primeira chamada para o segundo semestre de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Assim que apareceram os primeiros sintomas da doença, Jorge procurou o Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP/SSA) de Salvador, por meio da Associação Baiana de Cegos (ABC). Foi no centro que decidiu voltar a estudar. De família humilde – a mãe não se alfabetizou -, Jorge deixou a escola aos 20 anos, em 1980, quando cursava o 1º ano do ensino básico, que corresponde atualmente ao 1º do ensino médio. “Sempre foi o sonho de minha mãe que eu continuasse estudando. Com o incentivo do pessoal do CAP, resolvi que tentaria realizar o sonho em memória dela, já falecida”, conta.
Na época da decisão, Jorge tinha deficiência visual parcial. No CAP, aprendeu o sistema de leitura braile, a caminhar usando a bengala e até o Soroban, técnica de cálculo que utiliza esferas.
Passados 25 anos desde que deixou a escola, e determinado a concluir os estudos, ele ingressou no curso gratuito de Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio Vieira (Ejacav), na fase correspondente à 7ª série do ensino fundamental regular. Foi em meio a esse processo, em 2010, que ficou cego. Mas continuou firme na busca do sonho pela vaga na universidade. “Quando perdi totalmente a visão, foi fundamental o apoio de professores e colegas. Muitas vezes, colegas me esperavam no ponto de ônibus para ajudar, quando marcávamos grupos de estudos aos finais de semana”, lembra.
Jorge recorda com muito carinho os anos de estudo no Colégio Antônio Vieira. Na comemoração dos 100 anos da instituição, foi convidado a representar todos os alunos do EJACAV. “Percebi que todos os colegas eram exemplos de superação, cada um com sua história, o que se transformou em um ótimo incentivo para que eu nunca desistisse”, completa.
Paizão da turma
Após completar o ensino médio, não quis encerrar a busca por conhecimento e passou a frequentar o cursinho Pré-Vestibular Social da ONG Pierre Bourdieu. Na turma, adolescentes que partilhavam do mesmo sonho: entrar para a universidade. A diferença de idade e a deficiência de Jorge o fizeram sentir deslocado no início, mas logo a receptividade dos novos colegas fizeram sentir-se à vontade. “Quando percebi o respeito com que aqueles adolescentes me tratavam e o quanto queriam me ajudar, acabei virando o paizão da turma. Ao passar no vestibular, alguns prometeram me encontrar na universidade. Como poderia desistir depois dessa promessa?”, conta orgulhoso
Quanto à escolha do curso, o estudante diz que foi no Ejacav que sua paixão pela área começou, em trabalhos feitos para a aula de sociologia. Aprender sobre o contexto histórico da sociedade e o desenvolvimento e comportamento da sociedade como um todo o fascina. “As relações sociais sempre me ajudaram e são importantíssimas para minha inserção no mundo acadêmico. Quero aumentar meu conhecimento nessa área”, diz o calouro.
O desafio do braile
A leitura braile é uma ferramenta importante na viabilização dos estudos a deficientes visuais. Cerca de 170 vezes mais lenta do que a leitura regular, demanda uma concentração grande. O estudante admite que se saía melhor quando liam para ele. “O braile foi, para mim, o início de tudo. Se não fosse ele, eu não teria a perspectiva de entrar nos meios escolar e acadêmico. Mas como é preciso uma concentração maior, eu assimilava melhor os conteúdos quando os escutava”, conta.
Atualmente, com o avanço da tecnologia, os estudos para deficientes visuais ficaram mais rápidos e fáceis, especialmente com a ajuda da plataforma NDVA (Non-visual Desktop Access), que possibilita a leitura de tela para cegos.
Adaptação
Para Jorge, a ajuda de colegas e professores foi essencial para sua reinserção na escola. “No dia a dia, preciso da ajuda das pessoas o tempo inteiro. Para atravessar a rua, para pegar um ônibus. Não é diferente na hora de estudar. Os grupos de estudo com meus colegas eram essenciais para que eu entendesse melhor a matéria”, conta.
O processo de adaptação à sua nova condição começou quando ainda possuía baixa visão, o que facilitou sua aceitação. Com a perda total da visão, sua maior dificuldade, conta, foi a utilização da bengala, pois tinha vergonha dos vizinhos o verem com ela. “Ralei muito a canela para aprender a usar a bengala. Tinha um pouco de resistência, mas precisei vencer essa barreira para ganhar mais independência na mobilidade, para não perder as atividades do CAP.”
Jorge vê os estudos como uma alavanca para que o deficiente visual se adapte à nova realidade com maior facilidade. “A melhor forma de conquistar objetivos é através dos estudos. A ciência avança surpreendentemente, mas precisa que alguém estude. Podemos descobrir instrumentos que facilitem a vida de deficientes visuais”, sonha. Determinado, Jorge combate a ideia de que a inclusão seja apenas uma forma assistencial de reinserção. Afirma que o deficiente tem de estar no meio acadêmico por querer adquirir o conhecimento com esforço e capacidade, não só porque é deficiente.
Preconceito
Jorge acredita que não existe preconceito pior do que o do próprio deficiente visual. “Quando o deficiente acredita que não pode levar uma vida normal, ele perde o estímulo. Esse preconceito é o primeiro que deve ser combatido. Independentemente de ser cego, sou vivo. Posso viver, posso estudar. Como homem e cidadão, contribuo para o desenvolvimento do país no qual nasci”, afirma.
Garante que prestou a prova como qualquer outro aluno. A única diferença é que tinha direito a um ledor, pessoa que lia a prova para que ele respondesse. Jorge faz questão de ressaltar que respondeu à mesma prova dos outros candidatos. A transcrição das respostas é feita exatamente como o candidato as fala. Se os acentos ou pontuação não forem falados, o ledor não os transcreve.
Para Jorge, ainda faltam cuidado e sensibilidade com os cegos de boa parte da sociedade. “Às vezes me pergunto se eu que estou cego ou as pessoas em geral. Uma vez estava subindo em um ônibus com a bengala e um moço me atropelou, quebrou minha bengala e nem sequer pediu desculpas. Por outro lado, já encontrei pessoas maravilhosas que chegavam a atravessar a rua para me ajudar”, cita.
Ávido de conhecimento, o novo universitário baiano não contém a alegria e ansiedade para que se iniciem logo as aulas. “Os desafios estão aí para ser encarados e superados. Terei de acordar às 4 da manhã para conseguir chegar na faculdade no horário da aula. Mas não me sinto no direito de desistir, pois muita gente não consegue chegar onde cheguei”.
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