Pelos desvios da cosa nostra
Em 1989, a jornalista alemã Petra Reski rumou para a Itália com a intenção de fazer uma reportagem sobre a Máfia em Palermo. Logo, sentiu-se atraída pela hierarquia das famílias mafiosas, pelo papel das mulheres (responsáveis por transmitir às gerações seguintes os mandamentos de seus clãs), pelo envolvimento da Igreja e, principalmente, pela ligação direta […]
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Em 1989, a jornalista alemã Petra Reski rumou para a Itália com a intenção de fazer uma reportagem sobre a Máfia em Palermo. Logo, sentiu-se atraída pela hierarquia das famílias mafiosas, pelo papel das mulheres (responsáveis por transmitir às gerações seguintes os mandamentos de seus clãs), pelo envolvimento da Igreja e, principalmente, pela ligação direta entre governo e polícia italiana com essas facções criminosas. Com informações tão variadas, Petra escreveu Máfia – Padrinhos, Pizzarias e Falsos Padres, lançado agora pela editora Tinta Negra.
Trata-se de um delicioso relato em forma de diário em que a jornalista, hoje vivendo em Veneza, denuncia o funcionamento de uma organização criminosa que movimenta milhões de dólares em contrabando, tráfico de drogas, armas e mulheres, além da lavagem de dinheiro. A narrativa é costurada a partir da biografia de Letizia Battaglia, a mais importante fotógrafa antimáfia da Itália. Acompanhando suas ações, surgem personagens que inspiram cada capítulo do livro.
Como Marcello Fava, apadrinhado por um dos chefões da família e que se tornou um desertor da Cosa Nostra, obrigado, assim, a viver escondido e protegido pela polícia. A traição é uma mancha imperdoável, especialmente pela necessidade de as facções viverem invisíveis, sob fachadas de pizzarias e setor hoteleiro.
Tal estabilidade é garantida pela espetacular rede imposta pela Máfia, que inclui a Igreja (padres tornam-se cúmplices dos principais chefões italianos) e o governo – a partir de depoimentos de desertores, Petra Reski monta o quebra-cabeça que comprova a ligação direta entre o partido de direita Forza Italia, do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, e a Cosa Nostra: o político atua contra juízes e desembargadores pertencentes a grupos antimáfia, desacreditando-os e insinuando sua participação em intrigas políticas.
Apesar do envolvimento com tantos pecados, os mafiosos são retratados como verdadeiros carolas, promotores de casamentos, batizados e procissões. “Deus existe para ser útil à Cosa Nostra”, afirma Petra. “A Cosa Nostra tem esperança na justiça divina. A terrena, ela faz por conta própria. Processos podem ser julgados, juízes e políticos podem ser comprados.” Por e-mail, a escritora respondeu às seguintes questões.
Que problemas você enfrentou ao lidar com a Máfia?
Obviamente, os chefões mafiosos não gostam de jornalistas que descrevem seus negócios. Ou suas relações políticas. Eles não se importam se se escreve sobre crime e sangue, pois isso reforça o mito de violência que envolve a Máfia. Como descrevi seus negócios, fui processada na Alemanha e eles conseguiram que trechos de meu livro fossem encobertos com tarja negra a fim de proteger a “privacidade” de certos “comerciantes” italianos na Alemanha.
Você precisou de proteção?
Quando comecei a divulgar o livro, passei a ter proteção em público. A polícia italiana é rigorosa contra a Máfia e não apenas o ramo siciliano. Mas, enquanto persistir um relacionamento entre parte da polícia e a Máfia, será difícil resolver o problema. Há muitos políticos que criam leis favoráveis à organização criminosa que, por sua vez, estende seus negócios na Alemanha, Grécia, França, Holanda, países onde é mais fácil lavar o dinheiro que na Itália.
Histórias sobre as famílias da Máfia sempre são fascinantes.
Sim, sempre me interessei pelo aspecto psicológico do comportamento dos mafiosos. No livro, relato o caso do chefão Michele Navarra, médico da cidade de Corleone que assassinou um garoto de 10 anos com injeção de veneno porque ele testemunhou um crime praticado pela família. Para os chefões, não há valores, a história sobre honra e respeito é uma invenção, um mito útil para manter a união entre seus membros. Por isso que a Máfia copia os mandamentos da Igreja Católica: os homens precisam acreditar em algo.
E o que dizer da linguagem da Máfia? É algo específico?
É o silêncio. O não dito. Você precisa ler nas entrelinhas. É como se diz na Sicília: “Quem quer entender, entende.”
A mulher tem um papel fundamental?
É o outro lado da moeda: ela educa os filhos a partir dos valores mafiosos, é a responsável pela transmissão de cultura. As mulheres sabem tudo sobre a atividade criminosa dos maridos, não são inocentes. Mesmo assim, a Justiça italiana as considera vítimas da violência dos maridos. Elas também são decisivas quando os mafiosos querem se transformar em traidores: sem o apoio delas, eles não vão adiante. Na Máfia calabresa, elas são conhecidas como as “irmãs do silêncio”.
OS MANDAMENTOS
1.Amar o chefe sobre todas as coisas
O “boss”, como é conhecido um chefe de família, é infalível, uma padre eterno, um representante de Deus na Terra, senhor sobre a vida e a morte. Suas vontades devem ser respeitadas e não discutidas, assim como sua religiosidade e cuidado com a família.
2.Honrarás pai e mãe
A manutenção da família está acima de tudo, até acima da própria vida, mas apenas enquanto um membro da família não jogar a dignidade de “um homem de honra”, do clã ou da Cosa Nostra na lama – uma mulher que tem caso extraconjugal comentado por toda a cidade põe sua vida em risco.
3.Matarás, se preciso for
Um “homem de honra” mata com objetividade. Para ele, matar é o cumprimento do dever para com seu país, seu povo e à Cosa Nostra, a quem ele jurou servir. As mortes a- contecem em dias marcantes, como Natal, para que os familiares associem a data ao assassinato para o resto da vida.
AS VÁRIAS MÁFIAS
Cosa Nostra
Também conhecida como Máfia, é a mais antiga das organizações, com origens datando do fim do século 19, na Sicília, Itália. Também se desenvolveu na costa Leste dos Estados Unidos e na Austrália, seguindo as ondas de imigrantes italianos. Foi a primeira organização a entrar no mercado de importação e exportação de drogas e lavagem de dinheiro.
Camorra
Originário de Nápoles, Itália, trata-se do único fenômeno mafioso proveniente do meio urbano. Trata-se da organização mais voltada para o meio empresarial. Suas atividades vão da agiotagem à extorsão, do contrabando de cigarros ao tráfico de drogas, da importação irregular de carne a fraudes à União Europeia. Estima-se que conte atualmente com cerca de 110 famílias operacionais e cerca de 7 mil afiliados.
“Ndrangheta
Associação que se formou na região italiana da Calábria, é ligada ao tráfico de drogas e corrupção pública. A palavra “ndrangheta vem do grego e significa heroísmo e virtude. Diferente de outras organizações mafiosas que possuem sistema piramidal de chefia, os grupos “ndrangheta são baseados em famílias de sangue (chamam “ndrine).
Sacra Corona Unita
Com presença no Brasil, é uma organização criminosa que atua na Puglia, Sul de Itália. É envolvida com tráfico de armas, drogas e mulheres, além de exploração sexual e contrabando.
QUEM É
PETRA RESKI
JORNALISTA ESCRITORA
Nascida em Kamen, na Alemanha, em 1958, estudou literatura francesa, ciências políticas e sociologia. Com a publicação do livro Máfia, foi considerada, em seu país, a melhor jornalista de 2008 na categoria reportagem. Atualmente, vive em Veneza, na Itália.
MÁFIA – PADRINHOS, PIZZARIAS E FALSOS PADRES
Autora: Petra Reski
Tradução: André Delmonte
Editora: Tinta Negra
(240 páginas, R$ 39,90)
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