Guardadora de túmulos há 25 anos conta como é a vida de uma mãe por três gerações
Maria de Lurdes Flores ganha a vida limpando túmulos em cemitério de Dourados; ela cuidou dos pais, dos irmãos, dos filhos e hoje, dos netos. A mãe-avó teve dez filhos, seis já morreram. Acompanhe essa história
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Maria de Lurdes Flores ganha a vida limpando túmulos em cemitério de Dourados; ela cuidou dos pais, dos irmãos, dos filhos e hoje, dos netos. A mãe-avó teve dez filhos, seis já morreram. Acompanhe essa história
Enquanto Mateus e Tom ficam ziguezagueando nas alamedas mortificadas do Cemitério Santo Antônio de Pádua de Dourados, a mamãe-vovó Maria de Lourdes Flores esfrega-esfrega-esfrega escovas com água e sabão em lápides antigas onde repousam personalidades da história e do cotidiano da cidade.
Nesta refrega diária pela sobrevivência Lourdes vive relembrando um passado de tristeza, dificuldades e muita esperança no futuro dos oitos netos que cria como filhos. Aos 63 anos de idade Lourdes teve que ser mãe desde a infância. Foi mãe de seus irmãos. Foi mãe de sua mãe e de seu pai doentes e enfraquecidos.
Enquanto seus netos Tom e Mateus brincam Maria de Lourdes que há vinte e cinco anos é uma Guardadora de Túmulos conta suas peripécias para garantir o sustento dos netos que cria numa casa simples da periferia da cidade.
Como funcionária pública ganha apenas um salário mínimo. Dinheiro insuficiente para sobreviver. Por isso Lourdes de segunda a sexta-feira dedica parte do dia para cuidar de túmulos. Tem quase oitenta clientes. Todos pagam mensalmente. Alguns que moram no exterior aparecem no final do ano e pagam de uma só vez.
Assim é a rotina da Guardadora de Túmulos que preserva numa caderneta surrada os nomes e telefones de todos os seus clientes. É um negócio como qualquer outro. De dar inveja a qualquer empresário. Lourdes conta que as famílias com menor poder aquisitivo pagam melhor. Quanto mais rico mais abandonado fica o túmulo. Ela cobra de R$ 20,00 a R$ 50,00 para manter limpo um jazigo dependendo do seu tamanho.
Ex-deputados Weimar Torres e José Cerveira, empresários bem sucedidos e pessoas simples fazem parte do caderninho da Guardadora de Túmulos que regozija ao elogiar os parentes dos mortos nipo-brasileiros que são os melhores pagadores. Só não aceitam serem cobrados.
Lourdes faz parte de um exército de dez mulheres que cuidam das casas dos mortos de Dourados, mas como ela somente ela. Com uma doçura sem par, Lourdes demonstra em seu rosto sulcado dores de um passado de tristezas profundas marcado por tragédias pessoais.
A Guardadora de Túmulos tinha apenas doze anos de idade. Uma criança ainda e teve que trabalhar de empregada doméstica para levar comida para casa. Os pais adoentados mal conseguiam se levantar. Lourdes deixava de almoçar na casa da patroa para levar uma matula para os pais. Como uma mãe zelosa cuidou dos pais até morrerem. Ao mesmo tempo era mãe de seus irmãos.
Amargurada com tanta pobreza e falta de perspectivas Lourdes cedeu ao assédio de um senhorzinho sexagenário que se propôs a lhe ajudar. Esta ajuda resultou numa gravidez aos 13 anos de idade. Tornou-se mãe e passou a conviver com o homem que tinha idade para ser seu avô. A mãe de Lourdes concordou com o himeneu precoce explicando que com o tempo iria se acostumar e até a amar o seu companheiro.
E assim aconteceu. Lourdes passou amar o homem durante vinte anos mesmo sabendo que ele tinha outra família. Nenhum dos quatro filhos desta união recebeu o sobrenome do pai. O “senhorzinho” morreu e Lourdes ficou desamparada. Foi enganada por advogados e perdeu a casa e os outros bens deixados por seu protetor-provedor. Sobraram apenas os filhos e o retorno para o tanque e para a tábua de passar roupas.
– Fui enganada muitas vezes! – Disse Lourdes que se alegra que muitos dos seus algozes estão deitados debaixo do mesmo mármore que ela limpa todos os dias. “O melhor de tudo é que eles estão aqui mortos, cuido de seus túmulos e ainda recebo por isso”, sorri em tom de vingança tardia.
A Guardadora de Túmulos apenas nasceu em Guia Lopes da Laguna e lamenta por ainda não conhecer a cidade que pode desvelar alguns segredos do passado da sua família. Lourdes depois de perder o seu Senhor, o seu amor, arrumou novos amores.
Com um deles se embrenhou em fazendas de gado da região Dourados. Hoje é uma mulher sem marido e se orgulha de nunca ter se casado legalmente. “Se casamento fosse bom não precisava de testemunhas”, diz Lourdes que sempre repete este ditado popular para justificar os seus relacionamentos.
Ao todo a Guardadora de Túmulos teve uma dúzia de filhos. Apenas quatro continuam vivos. Ela conta que o fato mais marcante da sua vida foi quando seu primogênito foi soterrado por uma máquina de beneficiamento de arroz quando tinha apenas 12 anos.
Assim como ela o menino perdeu a infância para o trabalho e a indenização ficou nas mãos de um rábula. Outro morreu de meningite. Outros não vingaram por doenças como o sarampo, pneumonia e outras pestes que atingiam o povo pobre em tempos remotos.
Esta mãe não chora mais por causa das angústias, da sanha dos homens, pela morte violenta dos filhos, pois reencontrou a paz nos oito netos que foram deixados a sua guarda. Mateus e Tom são filhos de sua filha caçula assassinada brutalmente há dois anos.
Dependente de drogas químicas como o crack a mãe de Mateus viveu apenas 25 anos e não poderá ver os filhos cresceram. Ficou com a Guardadora de Túmulos a responsabilidade de educá-los assim como faz com as outras seis crianças filhas de seus outros filhos.
Com uma fé irremediável em Deus, a Guardadora de Túmulos não teme a morte e pede apenas uma vida longa para poder ver todos os seus filhos-netos encaminhados. Lourdes aprendeu a viver. Não é mais a mesma menina de 12 anos. Não é aquela mesma mulher desvairada. É uma pessoa forte que sabe em que ponto da vida errou e onde precisa mudar para viver melhor e mais feliz.
Lourdes conta que conta sempre com a providência divina. Nos momentos mais difíceis onde não consegue encontrar respostas para suas inquisições e para os seus problemas recorre a Deus e tudo se resolver.
A mãe que cuida os mortos sempre teve a morte rondando suas crias. Foi numa destas investidas da morte que Lourdes resistiu bravamente. Um dos filhos foi vítima de meningite e ficou paralítico. Lourdes lutou muito para salvar menino que parecia ter saído das trevas. Entrevado numa cama ele só saiu no colo mãe que procurou todos os lenitivos.
Apareceu na cidade um pastor milagreiro e só se foi Lourdes que o garoto entrevado. Depois de muitas orações o “cuidador de ovelhas” disse: – Mulher siga o seu caminho que seu filho está curado. Lourdes demorou em acreditar no milagre. No dia seguinte a molecada brincava no enorme quintal quando Lourdes gritou para que eles viessem comer bolo. Quem foi o primeiro aparecer correndo e gritando pelo nome da mãe? O filho coxo!
Passaram-se os anos e o menino mora em São Paulo onde atua como pastor evangélico. Lourdes diz não querer saber de ter uma religião especifica. – Deus apenas basta. Esta é a sentença final da mulher que não quer se aposentar do seu emprego público. Sem trabalhar Lourdes acredita que sua vida perderá o sentido.
Sem trabalhar no cemitério que já paz parte da sua vida pode ser o fim da mãe de muitos filhos que encontrou na morte e nos túmulos. Por isso ela continua com a coluna enverga sobre os túmulos de ricos e pobres para ganhar o pão-de-cada-dia para que vivam seus filhos-netos assim como não viveram ou sobreviveram seus pais e seus doze filhos.
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