O governo federal prepara o lançamento, para o início do mês que vem, de um novo programa nacional de enfrentamento ao crack e outras drogas. A iniciativa, que resgata um plano integrado lançado na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é ampla e articula diversos órgãos, como o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), subordinada ao Ministério da Justiça. O destaque dado ao crack não é por acaso: a droga é de fácil acesso, tem alta letalidade, causa dependência rapidamente e está presente em todo o território nacional.

Uma pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) feita no fim do ano passado em 3.950 cidades do País (71% do total) mostrou que em 98% delas há problemas relacionados à substância. Ao responder à pesquisa, alguns secretários de Saúde pediam literalmente socorro devido à dificuldade de enfrentar os problemas que a substância causa. “A grande maioria das detenções são decorrentes de roubos para a compra de drogas”, disse um deles.

“O crack chama a atenção porque sua dependência atinge níveis graves, impactantes: o usuário acaba se desligando de tudo, vaga pelas ruas em busca da droga”, afirma Marcelo Ribeiro, doutor em Medicina (Psiquiatria) e investigador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), serviço ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Na opinião dele, o que motiva o governo a lançar o plano, à parte o apelo político ou midiático, é a exígua rede de auxílio aos dependentes. “Até dez anos atrás, não tínhamos nenhum tratamento público especializado em dependência química”, diz. “Temos uma estrutura a ser construída ainda. (O programa) É uma tentativa de acelerar esse processo.”

Para o ex-diretor de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal e atual diretor de combate ao Organizado, Oslain Santana, não deve haver muita novidade no papel da polícia de reduzir a oferta da droga. “Na redução da oferta não tem muito milagre, não há uma nova lei ou medida que vai resolver um problema do crack”, afirma. “A estratégia da PF adotada atualmente dá resultado. Temos é que racionalizar o modelo de trabalho e potencializar as formas de atuação que estão dando certo.”

O plano integrado idealizado no governo Lula tratava a questão do crack articulando, junto a políticas de saúde e segurança, ações de assistência social, educação, , juventude e até esportes. Tudo indica que o programa de Dilma deve seguir a mesma linha. O Terra contatou a Senad para falar sobre a iniciativa, mas a assessoria do órgão informou que o plano está “em intensa articulação”, e por isso não podia se pronunciar sobre o tema ainda. O Ministério da Saúde também não se manifestou, alegando os mesmos motivos. Para entender melhor quais podem ser as estratégias do novo programa, o Terra foi atrás de profissionais da área para analisar como está e o que falta no combate ao crack.

Auxílio ao dependente

Segundo a pesquisa da CNM sobre o crack nos municípios do País, os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps Ad), principal estratégia para o acolhimento e tratamento de portadores de transtornos mentais e usuários de drogas, estão presentes em apenas 14,8% das cidades, o que o próprio estudo classifica de insuficiente.

Marcelo Ribeiro confirma e destaca que faltam “equipamentos sociais” e capacitação na área para cuidar dos dependentes. “Os Caps começaram a aparecer em 2003, e foram surgindo de maneira muito lenta”, diz. “Até então, só havia tratamento especializado dentro de universidades ou em parcerias com hospitais privados.”

De acordo com Ribeiro, é importante que haja opções públicas de tratamento para os diferentes estágios da dependência. “Tem aquele cara que começou a usar crack e perdeu o controle, mas continua empregado e em contato com a família. Este pode se beneficiar de uma internação curta em um ambulatório ou em um Caps”, diz o especialista.

Por outro lado, pacientes em estágio mais avançado de dependência precisam de uma internação mais longa – caso, por exemplo, das comunidades terapêuticas. Nesse modelo, que segundo Ribeiro demora nove meses ou mais, o paciente se interna voluntariamente para se tratar em um ambiente comunitário onde, junto a outros dependentes, cuida da residência: lava louça, limpa banheiros e faz atividades similares. Com isso, explica Ribeiro, “além de lutar por sua abstinência, reaprende a conviver”.

No livro O tratamento do usuário de crack, escrito em conjunto por Ribeiro, pelo especialista Ronaldo Laranjeira e por outros colaboradores, os profissionais afirmam que as escolas e usuários mais jovens devem ter prioridade no atendimento. Além disso, a obra, que deve ser lançada em novembro deste ano, diz que o sistema formal de tratamento deve trabalhar em sintonia com o informal de autoajuda, como Narcóticos Anônimos, grupos familiares, comunitários e religiosos.

Redução da oferta

Para os órgãos de segurança pública, não há muita distinção no policiamento contra o crack, oxi ou cocaína, já que todos derivam da mesma substância. Essa propriedade, explica o delegado-diretor do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos de São Paulo (Denarc), Wagner Giudice, dá flexibilidade ao tráfico. “A pasta-base fica armazenada em laboratório e, de acordo com a demanda, o traficante a transforma em cocaína ou crack.” Segundo Giudice, por essa razão é difícil ver grandes apreensões do produto final: geralmente se transporta a substância em forma de pasta.

De acordo com o diretor de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, Oslain Santana, os principais fornecedores de pasta-base para o Brasil são Colômbia, Peru e . Por isso, o primeiro objetivo da PF é evitar a entrada da droga no País. Porém, explica, encher as fronteiras nacionais com agentes não é a única solução. “A droga pode entrar na fronteira do Amazonas, do Acre e do Mato Grosso, mas o destino dela é o principal mercado consumidor: os Estados das regiões Sul e Sudeste, que concentram 75% do PIB nacional”, diz Santana.

Segundo Santana, a PF prioriza o enfrentamento do tráfico nos Estados de São Paulo, Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, que concentraram, nos últimos dez anos, 70% das apreensões de cocaína e 80% de maconha. Além disso, ele ressalta a importância de ações coordenadas com outras polícias no País e da cooperação internacional. “Nos últimos cinco anos, em parceria com a polícia do Paraguai, destruímos cerca de 3,8 mil t de maconha que seriam colhidas em território paraguaio”, diz.

Segundo ele, os pequenos e médios traficantes só transportam 30% da droga que circula no Brasil. “Os outros 70% são traficantes grandes, com meios requintados de camuflar a droga no interior de cargas lícitas que só a fiscalização ostensiva não coíbe.” Por isso, ele considera essencial o trabalho de inteligência da PF para desmantelar grandes organizações.

Em maio deste ano, deputados federais integrantes de uma comissão especial na Câmara visitaram a cracolândia no centro da capital paulista. Em uma reunião com o grupo, o diretor do Denarc sugeriu uma mudança na legislação para que houvesse a internação compulsória de dependentes de crack. “Se o usuário está alucinado há quatro dias e você pergunta se ele quer ser internado, o que ele vai responder? É claro que não”, diz Giudice. Ele ressalta, porém, que o governo precisa oferecer um lugar adequado para tratar o dependente. “Não adianta a polícia pegar aquele monte de gente que está na cracolândia. E daí? O que eu faço com eles?”, pergunta. “O próprio Estado tem que se organizar para levar a um lugar apropriado.”

No mesmo encontro, Giudice também sugeriu aos parlamentares que aumentassem a pena ao traficante eventual, que vende a substância nas ruas. “Assim, ele vai ficar com medo de vender a droga. Ele é quem faz a distribuição e acaba sendo, para muita gente, a porta de entrada para as drogas.”