Dois séculos atrás mulher preferiu a cadeia a viver com o marido violento

Episódio ocorreu em 1797, quando uma mulher foi à Justiça pedir divórcio por não concordar com os maus tratos do marido. Em Campo Grande, no ano passado foram parar na polícia 5.605 casos de violência

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Episódio ocorreu em 1797, quando uma mulher foi à Justiça pedir divórcio por não concordar com os maus tratos do marido. Em Campo Grande, no ano passado foram parar na polícia 5.605 casos de violência

Uma mulher de 31 anos de idade surpreendera a sociedade de Cuiabá, a capital do vizinho Mato Grosso, em fevereiro de 1797, 213 anos atrás, quando ela buscara ajuda judicial para separar-se do marido, um médico, alcoólatra e violento, segundo a denúncia ainda guardada hoje num centro histórico mato-grossense. Grávida e ameaçada de morte, ela denunciou o caso, mas ao invés de o marido ser punido, a mulher é quem fora empurrada à prisão.

Mas isso aconteceu no século XVIII e o enredo dessa causa judicial vai aparecer logo depois da não menos surpreendente estatística policial extraída dos arquivos da DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) de Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul. Embora a distância de um episódio ao outro, as duas histórias parecem uma: a mulher, ainda que já alcançado o século XXI, precisa recorrer à coragem para garantir sua segurança e a liberdade.

A chefe da DEAM de Campo Grande, Lúcia Falcão, disse que no ano passado 5.605 mulheres foram à polícia denunciar alguma situação de violência, a maioria contra o marido e por maus tratos. “Os casos registrados têm aumentado ano após ano. Isso quer dizer que as mulheres estão reagindo, acreditando na polícia e enfrentando seus agressores”, disse a policial.

Entre janeiro fevereiro deste ano, disse a delegada, 984 mulheres ou foram ameaçadas ou agredidas por seus companheiros, uma média de 16 casos por dia. Já de janeiro a fevereiro do ano passado, a delegacia registrou 619 casos, ou 365 ocorrências a menos do que a de agora.

“É preciso acabar com essa mentalidade de que a mulher é submissa, ela precisa exigir respeito, mudar seu comportamento e fazer com que o homem se conscientize disso”, disse a delegada, neste 8 de março, Dia da Mulher.

O raciocínio da delegada é justificado, segundo ela, pelos saltitantes números da violência contra a mulher. Em 2007, por exemplo, foram registradas 3.934 ocorrências; já no ano seguinte, em 2008, esse volume subiu para 4.689 casos. E no ano passado, foram anotadas mil ocorrências a mais, isto é, 5.605 ocorrências.

“Por que esse aumento? Uma mulher que denuncia o agressor encoraja a amiga ou uma vizinha que enfrenta a mesma situação. Mas não adianta ficar só no boletim de ocorrência, é preciso levar a denúncia até o fim”, disse a delegada.

O caso de dois séculos atrás

O resultado do episódio narrado a partir daqui, tido como “justo” à época expõe a velha e incansável luta da mulher pela liberdade. Ao invés de o marido ser punido por maltratar a mulher, foi ela que acabou presa.

Eis a história de uma Maria, produzida por este repórter, publicada em 9 de março de 2004, no jornal Folha do Estado, de Cuiabá, a capital de Mato Grosso.

Uma das prateleiras do Arquivo Público de Mato Grosso, na avenida Getúlio Vargas, esquina com a rua Comandante Costa, no miolo de Cuiabá, perto da tida parte velha da cidade, preserva um livro de 21 páginas e seu conteúdo ilustra um das mais comoventes históricos de luta pela liberdade feminina. Uma mulher fora condenada à prisão simplesmente por tentar se divorciar do marido que, segundo ela, planejava matá-la. E quem a mandou à prisão? A Igreja Católica por meio do juízo eclesiástico Corte com poder decisivo à época, composta por um vigário.

Era 13 de fevereiro de 1797 quando a dona de casa Maria Bernarda Poupino, de 31 anos, grávida, fora sentenciada. Ela havia denunciado o marido, o influente cirurgião da época, Francisco de Paula Azevedo, por maus tratos.

Maria e Azevedo tinham se casado havia três meses e meio, diz o documento pesquisado pela reportagem da Folha e disponível à população de segunda a sexta no período da tarde.

A escrita judicial, ainda nítida, embora produzida 207 anos atrás, fora qualificada como “auto de justificação sevícias [atos de crueldade ferina, de tortura física ou mental; maus tratos]”.

O texto registrado pelo escrivão Manuel Machado Siqueira narra primeiro a versão da mulher. Diz ela que casara com Francisco “há uns três meses, obedecendo e servindo como fazem as mulheres de honra e igual condição”.

“Que é mulher branca, boa nota, boa família desta Vila, tratada sempre à lei da nobreza, segundo promete o país”, segue Bernarda.

O plano do médico Francisco de Paula Azevedo, segundo a acusação da mulher, seria posto em prática no dia em que ela fosse ter o bebê.

Azevedo teria comentado a um conhecido que se a mulher não morresse durante o parto morreria depois. E se ela morresse ao dar a luz o médico prometera doar “50 oitavos de ouro para a missa das Almas”, narra o documento.

Conforme a denúncia registrada, o médico tramava envenenar a mulher com “algum tipo de bebida” caso ela sobrevivesse ao conceber o filho.

Maria Bernarda afirma ainda no processo que na noite de Reis (5 de janeiro de 1797) o médico a teria ameaçado diante de seus empregados, à época dois escravos. Um homem de cor parda teria ido à casa do médico conversar com a escrava da casa. Era noite e isso irritou o médico.

Houve confusão e um dos escravos, Francisco, teria sido chicoteado por nada ter feito para impedir a visita. A mulher teria tentado intermediar a discussão e acabou recebendo duras ameaças.

A partir daquele dia, os escravos não deveriam mais obedecê-la por ordem do marido. Mais: se a mulher desrespeitasse a regra da casa iria levar “tanta pancada até a Santa Unção”, assim está escrito no processo. Presume-se que o médico teria se referido à extrema-unção termo usado pelos católicos que significa sacramento para enfermidade sem cura.

Maria disse ainda que o marido bebia e que antes de vir para a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá, nome da capital Cuiabá de hoje, tinha tido problemas mentais no Rio de Janeiro. “Ele ficou louco no Rio”, disse a mulher, acrescentando que o marido agia com “furor” quando agia sob o efeito do álcool. Com isso, a mulher tinha receio de sofrer ataques do marido que prometera tratá-la como escrava desde a discussão narrada por ela no dia de Santo Reis.

Depois de relatada as denúncias aparecem os depoimentos de testemunhas que foram arroladas pelo juízo eclesiástico: seis homens, quatro dos quais eram amigo do médico, segundo o documento.

O primeiro a depor foi Luiz de Araújo Felgueira, um capitão do Exército. Essa testemunha questiona no início a posição social da mulher, que afirmara na audiência ser “tratada à luz da nobreza”.

O capitão quis dizer que Maria Bernarda não tinha família nobre, pois o pai dela trabalhava como mecânico. O oficial disse também que o médico era apaixonado pela mulher e que quando ficava com o “ânimo deliberado” era “tão somente por desabafo de sua paixão”. Nota-se depois que essa fala teve fundamental importância no desfecho judicial. Favorável ao médico.

Em seguida aparece nos papéis anotados em 1797 o depoimento de Mathias Viena Lobo, que só se preocupou em defender o colega. Ele disse que viu o médico “perturbado bastantemente da cabeça”. Mas, “só por uma vez”, completou.

Depois surge o depoimento de Carlos Silveira Principe, um médico que iria clinicar no parto de Maria Bernarda. Principe defendeu o amigo e atacou a mulher, dizendo que ela era negligente. Contou ainda que o denunciado Francisco de Paula Azevedo bebia “só sucos e chás, nunca aguardente”.

Caetano de Moura Meirelles, um negociante, também depôs em defesa do médico. Já João Peixoto, outro negociante, disse que conhecera o médico havia uns dez anos, mas nutria inimizade com ele por “particulares motivos”. Peixoto disse que a mulher tinha razão em denunciar o marido. Esse depoimento foi desprezado.

Joaquim Geraldo Tavares, outro depoente, defendeu o médico, mas admitiu que ouvira falar da trama do envenenamento e ainda afirmou que viu o médico “perturbado” pelo uso de bebida. Ele falou bem da família da mulher. Tais depoimentos não ajudaram em nada Maria Bernarda.

Assim ficou definida a denúncia: “esposa que acusa o marido de maus tratos e sevícias, perde o processo por falta de provas, sendo condenada a pagar à custa do processo e retornar para a companhia do seu marido ou ir para a cadeia pública”.

A mulher disse ao escrivão que “era seu gosto que todo o povo soubesse que preferia antes viver na cadeia que em casa de seu marido”. O documento não cita quanto tempo Maria Bernarda ficou presa nem se ela teve o filho.

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