Pesquisadores brasileiros sequenciaram, pela primeira vez no País, o genoma humano completo. O feito coincide com os dez anos do projeto que desvendou o DNA da bactéria Xylella fastidiosa e iniciou a pesquisa genômica no Brasil.

Na realidade, os cientistas sequenciaram dois genomas completos: o de uma célula tumoral e o de um linfócito sadio – célula de defesa do sangue. Ambos vieram da mesma pessoa, uma mulher indiana de 61 anos com câncer de mama. O objetivo foi identificar diferenças no DNA que ajudem a entender a doença (mais informações no gráfico).

O Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, coordenou o estudo. As amostras vieram de um banco de células em Nova York. O Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ), sequenciou os dois tipos de células e gerou dados que permitiram a identificação de mutações pontuais.

Uma filial do Ludwig em San Diego, na Califórnia, também realizou o sequenciamento completo, mas produziu informações para o estudo de rearranjos nos cromossomos.

As sequências geradas nos dois centros foram enviadas para a unidade paulistana do Ludwig, que realizou uma análise minuciosa. Os resultados serão publicados em uma revista científica internacional.

“Um dos motivos pelos quais escolhemos o câncer de mama é sua prevalência entre as mulheres brasileiras”, explica Anamaria Camargo, coordenadora do estudo, que recebeu cerca de R$ 2 milhões em financiamento dos Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia, por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Ludwig aportou quantia semelhante.

Relações. “Esta é uma pesquisa de fronteira. Semelhante à realizada pelos principais grupos que estudam genômica do câncer no mundo”, afirma o inglês Andrew Simpson, diretor científico do Instituto Ludwig mundial.

Até agora, só foram publicados nove artigos sobre o genoma do câncer. Todos a partir de dezembro. O estudo brasileiro será o décimo e o primeiro a comparar o DNA completo de um tumor com o de uma célula sadia.

O comentário de Simpson recorda a repercussão internacional do sequenciamento da Xylella, quando o País apareceu na vanguarda da pesquisa biotecnológica mundial.

“Samba, futebol e… genômica. A lista de coisas pelas quais o Brasil é renomado se tornou, de repente, mais longa”, afirmava um artigo publicado há dez anos na revista britânica The Economist. O editorial da revista Nature de 13 de julho de 2000 apontava que o sequenciamento da Xylella “confirmava a determinação brasileira de ingressar na era pós-genômica ombro a ombro com cientistas dos países ricos”.

E as semelhanças nos elogios dirigidos aos dois projetos – Xylella e câncer – não são mera coincidência. Simpson coordenou o Projeto Xylella no Brasil. “Teve um impacto imenso na minha carreira”, afirma. Anamaria ainda tem sobre a mesa uma placa comemorativa do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) pela ajuda que prestou no sequenciamento da bactéria.

Interessados na genômica do câncer, Simpson e Anamaria ingressaram em um projeto que sequenciou o DNA de uma praga dos laranjais. Como a maioria dos 35 grupos que participaram do projeto, não queriam estudar uma bactéria, mas aprender a revelar as letras químicas que constituem o código genético – idênticas para todos os seres vivos.

“O Projeto Xylella atingiu plenamente seu objetivo principal: formar pesquisadores capazes de utilizar as ferramentas de sequenciamento”, afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), entidade responsável pelo projeto, lançado em 14 de outubro de 1997, que exigiu investimento de US$ 15 milhões. Cerca de 200 pesquisadores participaram da iniciativa.

O sequenciamento completo do genoma humano para estudo do câncer é um dos frutos – provavelmente o mais recente – de uma das iniciativas mais fecundas da ciência brasileira. “O Projeto Xylella foi o pontapé inicial de tudo o que foi feito com genoma no Brasil desde então”, aponta Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, pesquisadora do Laboratório de Bioinformática do LNCC e coordenadora da Rede Nacional de Sequenciamento de DNA.

Com o Projeto Xylella, a Fapesp criou uma rede que serviu para sequenciar outros organismos, como a bactéria Xanthomonas (responsável pelo cancro cítrico), parte do genoma da cana-de-açúcar e células de alguns tipos de tumores. A rede recebeu o nome de Onsa, abreviatura em inglês para Organização para Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos, uma brincadeira com o TIGR (Instituto para Pesquisa Genômica, cuja pronúncia é “tigre” em inglês), iniciativa criada pelo pesquisador e empresário americano Craig Venter.

A Onsa já foi dissolvida, mas, em 2000, surgiu a rede nacional que, em boa medida, utiliza uma estrutura semelhante, com pesquisadores espalhados por laboratórios em universidades de vários Estados do País. Atualmente, há dezenas de projetos para sequenciar organismos tão diferentes quanto o mosquito transmissor da malária e bactérias que fixam nitrogênio no solo.