Com padronização estética, herança cultural se perde nos cemitérios de Campo Grande
Embora criada por e para os vivos, a arte tumular reflete a cultura, as tradições e a realidade socioeconômica de todo um povo
Lethycia Anjos –
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A maneira como lidamos com a morte se reflete nas diferentes crenças e tradições que as culturas ao redor do mundo encontram para homenagear os que partiram. No Brasil, são mais comuns sepultamentos tradicionais em cemitérios, onde o corpo é enterrado em um caixão de madeira, seguindo regras para proteger o meio ambiente e a saúde pública.
É nesse cenário que surge a arte tumular, também conhecida como arte cemiterial, termo designado as obras criadas para adornar sepulturas em cemitérios.
Em Campo Grande, especialmente nos cemitérios mais antigos, como o Santo Antônio e o Santo Amaro, a arte tumular se manifesta em uma diversidade de representações, que vão desde lápides simples até monumentos imponentes, inspirados em estilos como o rococó e o neoclássico, que mesclam com arquiteturas modernas e minimalistas.
Arquiteto e doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, Fábio Fernando Martins explica que muitos túmulos presentes na Capital foram construídos com materiais importados, provenientes de outros países, e que hoje, não se encontram mais.
“As sepulturas são, em sua maioria, ornamentadas com esculturas no ápice de seus sepulcros, com frisos emoldurados no reboco, molduras, ornatos, desenhos em formas de arcos, mármores e imagens. A maioria das construções são datadas do século XIX (19) ao século XX (20), predominando assim o estilo eclético”, diz.
Homogeneização estética
No entanto, nos últimos anos, um fenômeno crescente descrito como uma ‘homogeneização estética’ tem se intensificado na arte tumular. Estruturas antigas e novas são reformadas/criadas, com materiais contemporâneos, como vidro temperado e mármore polido, resultando em túmulos mais minimalistas e padronizados.
Esse processo não apenas uniformiza visualmente os cemitérios, mas também coloca em risco o legado da memória cultural ali preservada.
Os cemitérios particulares de Campo Grande, por exemplo, atualmente adotam um estilo tradicional ‘americanizado’: na maioria desses espaços, os túmulos são compostos por pequenas placas de metal padronizadas, dispostas em um jardim. Nesses locais, há restrições quanto ao uso de flores artificiais e outros tipos de ornamentos.
Para Fábio, a arquitetura – assim como o design – reflete cada época, período e cultura, construindo marcos e legados por meio da arte.
Segundo ele, a arte cemiterial, é como a moda, e sofre influências das tendências atuais. Hoje, existe uma ampla divulgação dessa estética minimalista na mídia, o que contribui para esse fenômeno.
“A arquitetura tumular dos jazigos se apresenta em um contexto cultural mais ‘clean’. No entanto, assim como na arquitetura contemporânea, há uma fusão do moderno com releituras de estilos como o neoclássico e o eclético”, explica.
Embora precário, cemitério Santo Antônio preserva a memória de Campo Grande
Localizado na Avenida da Consolação, o Cemitério Santo Antônio ostenta o título de mais antigo de Campo Grande. Em seus 41.328 metros quadrados estão sepultados grandes nomes da história da cidade, como José Antônio Pereira, as artistas Lídia Baís e Glauce Rocha, e políticos como Ary Coelho e Amando de Oliveira, que também doou o terreno para a construção do cemitério e foi o primeiro enterrado no local.
Além dos túmulos famosos – como o do fundador da cidade, que exibe uma réplica do Obelisco – o cemitério guarda memórias e tradições de famílias que moldaram a história de Campo Grande. Passear por ele é como explorar um museu a céu aberto, devido à sua diversidade cultural e arquitetônica.
Com 16.013 sepultados, o local, inaugurado em 1.914, contém túmulos, que datam de um século. Nos jazigos, há esculturas de inspiração cristã, como anjos e representações de Jesus, capelas de mármore, e lápides únicas feitas toda em pedra.
Do eclético ao modernismo
Ao analisar os tumulos e jazigos do Cemitério Santo Antônio, Fábio obeserva que esses túmulos com detalhes como em linhas retas, formas geométricas, o próprio obelisco e mini obeliscos coroando o ápice dos tumulos, remetem ao estilo art. déco.
No estilo Art Déco, prevalecem a simetria, as figuras geométricas e o uso marcante de linhas retas, complementadas por frisos que transmitem uma sensação de movimento. Elementos da natureza, como flores e animais, são representados de forma estilizada. As construções em Art Déco geralmente utilizam concreto armado e são revestidas com materiais nobres, como mármore, granito e pó de pedra, reforçando a elegância e o caráter imponente do estilo.
Os túmulos mais tradicionais e antigos apresentam referências marcantes do estilo eclético, onde predominam ornamentos como jarros, ânforas, bustos e estátuas. Geralmente construídos em alvenaria de pedra ou tijolo, esses túmulos apresentam materiais como ferro, vidro e revestimentos cerâmicos, criando uma estética rica em detalhes.
“Pode-se observar os detalhes como os frontões, colunas, frisos, estátuas, torre pontiaguda, ornamentos. Essa mistura com elementos de variados estilos remete ao estilo eclético”, analisa o arquiteto.
Por mais inusitado que possa parecer, em cidades como São Paulo, Buenos Aires e Paris, o turismo cemiterial tornou-se uma prática consolidada que atrai visitantes interessados em conhecer a história e a arte desses espaços.
“Há quem faça sinal da cruz ao passar por um cemitério, em respeito aos mortos. Também há os que têm o local como um espaço de devoção. Na verdade, esses locais fúnebres instigam o imaginário popular com sentimentos dispares que variam desde a tristeza ao excitante fascínio, como o turismo cemiterial”, explica Fábio.
‘Sete mortes e 17 feridos no desastre de hoje’
Embora pouco ornamentado, um conjunto de túmulos de mármore negro se destaca no cemitério Santo Antônio. Por trás dessas lápides existe uma história ocorrida há mais de 80 anos. Em 11 de março de 1944, sete trabalhadores morreram após uma descarga elétrica. No dia seguinte, a manchete anunciava: “Sete mortes e 17 feridos no desastre de hoje”.
Os túmulos, com homenagens da Base Aérea de Campo Grande, guardam a memória de Manoel de Arruda, Teófilo de Oliveira, Carlos Gonçalves, João da Silva, Dario Felix, Manoel Nunes Macedo e José Batista Costa. Registros históricos ainda mencionam José Ferreira da Silva como outra vítima, mas os dois últimos não foram sepultados com o grupo de seis, pois suas famílias possuíam jazigos próprios.
“Pode-se observar a ausência de elementos, sem ornamentos e detalhes, uma forma retangular e somente revestida por mármore. Portanto uma arquitetura tumular já moderna, mais clean”, explica Fábio. O estilo modernista é marcado pelo uso de concreto armado, ausência de ornamentos e amplas aberturas.
Influências da cultura japonesa
Outro aspecto interessante é a predominância de túmulos e capelas de mármore e granito pertencentes a famílias de origem japonesa no cemitério Santo Antônio, refletindo a influência cultural desse grupo.
Ao analisar os túmulos, Fábio explica que uma das peculiaridades está na tipologia padrão. Revestida com mármore preto, base em pedras rústicas e coroamento em mármore, a lapide apresenta fotos, o símbolo da cruz e inscrições em japonês. Nas laterais, o jazigo incorpora elementos característicos dos jardins orientais, como os “toros” e as tradicionais lanternas japonesas, feitas de pedra, madeira ou metal, típicas do Extremo Oriente.
“Na China, esses exemplares são muito raros, e na Coreia não são tão comuns quanto no Japão, onde inicialmente foram utilizados em templos budistas para iluminar caminhos”, explica Fábio.
Apesar dos primeiros imigrantes japoneses terem chegado ao Brasil em 1908, eles só se estabeleceram em Mato Grosso (antes da criação do Estado, em 1977) a partir de 1910, atraídos pela construção da estrada de ferro. Hoje, Mato Grosso do Sul abriga a terceira maior população de descendentes japoneses no país, o que pode justificar a predominância desses túmulos.
Histórico de vandalismo evidenciam abandono dos cemitérios
Contudo, ao longo dos anos, essa herança cultural tem se perdido gradativamente, devido ao abandono e a ausência de políticas de preservação. No cemitério Santo Antônio, muitos túmulos e lápides já não revelam mais a identidade de quem ali repousa, seja pela ação do tempo, vandalismo ou furtos. As placas, geralmente confeccionadas em cobre – material importante no mercado clandestino – são frequentes alvos de roubos.
Fábio Martins destaca que essa mudança estética dos túmulos e lápides também está atrelada ao abandono e a falta de políticas públicas de manutenção dos cemitérios. Em meio a um cenário precário, famílias investem cada vez menos em túmulos ornamentados.
“Os cemitérios são constantes alvos de depredação. Há o abandono por parte de alguns familiares em relação os jazigos, e, também, furtos por parte de vândalos e usuários. Tudo isso contribui para essa mudança”, diz.
No caso mais recente, ocorrido em julho deste ano, dois homens acabaram presos por agentes da Guarda Civil Metropolitana de Campo Grande, após furtarem imagens de santos do cemitério Santo Antônio. Segundo os criminosos, as imagens iriam para desmanche em um ferro-velho.
Desamparo
Outra situação recorrente que evidencia o descaso do poder público com o patrimônio, ocorre no cemitério Santo Amaro. Em outubro de 2023, parte do muro desabou após um temporal, desde então, tapumes de lata tentam preservar o acesso e ocultar os túmulos para o Feriado de Finados. Em 2022, o mesmo problema aconteceu, quando outra forte tempestade provocou o desabamento do muro.
Para Fábio, a preocupação com a ornamentação dos túmulos, neste momento cultural, é quase inexistente, assim como a restauração dos jazigos antigos. Atualmente, observa-se o abandono de muitos túmulos in loco.
“A arquitetura como patrimônio cultural, de maneira geral — incluindo propriedades privadas, públicas e cemitérios —, principalmente em cidades do interior, não apresenta propostas de restauração por parte de seus proprietários, do poder público e do legislativo. Isso evidencia o descaso e a falta de compromisso de ambos com esse patrimônio cultural”.
Vale lembrar que, em 2022, o Ministério Público de Mato Grosso do Sul solicitou a interdição do Cemitério Santo Antônio devido à poluição ambiental. A medida cobrava o controle do ‘necrochorume’, tipo de chorume produzido pela decomposição dos cadáveres nos cemitérios. Esse resíduo é contaminante, o que torna necessária a impermeabilização do solo para evitar danos, conforme previsto na legislação ambiental.
A sentença de 2019 responsabilizava a Prefeitura de Campo Grande pelos danos ambientais e pela regularização da licença de operação do cemitério. A ação que determinou a adequação do espaço teve início em 2011, com sentença de primeira instância emitida em 2016 e trânsito em julgado em 2019.
‘Conexão histórica’
‘Consideramos todo cemitério como patrimônio, sendo assim, deveriam estar seguros sobre qualquer alteração’. Segundo Fábio, existe um documento elaborado por profissionais da área e encaminhado à Prefeitura de Campo Grande que reforça a importância e zelo cemiterial.
“É algo como sitio arqueológico, se constitui da mesma forma, há ali uma profunda conexão histórica com a comunidade local. Mesmo sem uma lei local específica nas cidades sul-mato-grossenses, existe, a lei penal, Art.210 que prevê como crime a violação a sepultura”, explica.
Nesse caso, se o jazigo for particular, caracteriza-se também o crime contra o patrimônio e famílias podem entrar com ação para reparação. Quando o jazigo for público, soma-se ao crime de dano ao patrimônio público, no Art.163 do código penal.
“As pessoas precisam se apropriar mais, se interessar pelo assunto para cobrar o poder público e legislativo em relação à conservação. Cemitérios precisam de muros, proteções como cercas elétricas, guarda diurno e noturno para a melhor segurança do local. E assim, zelar pela sepultura de seus entes”, finaliza.
Arte tumular reflete a realidade socioeconômica das famílias
“Os cemitérios são feitos por e para os vivos. A ostentação da arte e da arquitetura tumular não tem outra função senão a de diferenciar os estratos sociais, as nacionalidades, as religiões e as origens étnicas que eram conhecidos em vida. Particularidades perpetuadas nos símbolos arquitetônicos e estéticos que tentam abrandar e disfarçar a morte que os cemitérios guardam a sete palmos da superfície”, a citação do pesquisador Fabio William de Souza descreve bem o conceito da arte cemiterial.
Embora a Capital concentre o maior número de cemitérios, os túmulos e jazigos mais elaborados são ainda mais comuns em cidades do interior de Mato Grosso do Sul. Em Campo Grande, o acesso a essas estruturas é restrito, pois os cemitérios municipais enfrentam uma escassez de vagas, limitando-se, atualmente, às famílias que adquiriram vagas há anos atrás.
Outro aspecto a se considerar é que, além das influências artísticas e culturais, a arte cemiterial reflete a realidade socioeconômica das famílias. Túmulos mais elaborados, com mármores importados e esculturas projetadas, eram encomendados por famílias de maior poder aquisitivo, visto que túmulos com granito e mármore de qualidade podem variar entre R$ 60 mil a R$ 100 mil.
Nesse cenário, familias viam nas estruturas tumulares uma forma de perpetuar sua influência ao longo do tempo. Assim, demonstrando que, mesmo após a morte, não há igualdade social.
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