Dos 61 anos e 4 meses de vida, por mais incrível que pareça, 51 deles foram dedicados a servir. ‘Dona Marli pra cá, dona Marli pra lá', todos a conheciam nos corredores da , em , onde sempre passava cumprimentando as pessoas e, em seguida, ia preparar o santo cafezinho. A rotina foi essa, por 36 anos, até a recente aposentadoria. Todo este trabalho, no entanto, poderia ter sido reduzido em anos anteriores e até décadas, caso ela tivesse sido registrada antes ou até mesmo recebesse reconhecimento pelo trabalho doméstico, que começou ainda na infância, aos 10 anos de idade. 

Nesta quarta-feira (27), data alusiva ao Dia da Empregada Doméstica, Marli Soares da Silva é a homenageada que representa muito bem a categoria. Não só pela resiliência ao acordar cedo para pegar o ônibus por milhares de manhãs, não só pelo capricho com a limpeza e a servidão, mas sim até pela inocência ao aceitar as condições impostas pelos patrões e não exigir sequer um salário fixo e carteira assinada. 

Marli agora curte a aposentaria, fazendo caminhadas e passeio com o esposo e a família. Foto: Luiz Alberto/Arquivo Pessoal

No entanto, ao relembrar os primeiros empregos, ainda na década de 70, ela fala sobre “um hábito” da época e não se queixa da falta de conhecimento. “Naquele tempo, aos 10 anos, a gente já estava trabalhando. Meu pai me levou em uma casa, eu tinha 10 para 11 anos e morávamos na região do Santa Luzia, quando ainda era tudo chácara por aqui. Não tinha ônibus e meu pai passava a cavalo na avenida principal do bairro, onde eu moro hoje”, relembrou Marli. 

“Eu tinha somente um chinelo, mas era feliz”, diz Marli

Entre tantas lembranças, Marli fala que não esquece o grude que tinha com o pai. “Eu adorava andar com ele. Meu pai era um homem muito trabalhador. Ele veio do Norte e aqui trabalhou muito. Era padeiro, só que fazia de tudo também. Tinha cavalo, carroça e nos criou muito bem, ao lado da minha e dos meus 5 irmãos. Lembro que tinha somente um chinelo naquela época, mas era muito feliz e via eles aos finais de semana”, disse.

Na casa da família que trabalhava, no entanto, ela tinha muito medo do “temido quartinho”. “Eu era criança, ficava com medo de assombração e queria dormir com a luz acesa nesta primeira casa que trabalhei. Fiquei lá até os 14 anos, quando falei que não queria trabalhar lá mais, de jeito nenhum, e daí fui me tornar babá por um tempo, já em outra casa”, explicou. 

Marli ao lado do irmão, que trabalha no mesmo hospital onde ela se aposentou. Foto: Redes Sociais/Reprodução

Com a adolescência chegando, já uma moça, Marli recebeu outra proposta de trabalho. “Chegaram de carro e falaram para minha mãe: ‘Vou tratar ela como filha'. E lá fui eu para outra casa. Minhas irmãs já estavam todas casadas e, neste novo serviço, conheci uma amiga que falo que é mais uma irmã: a Mercedes, que eu chamo de Mer. A patroa nos falava que não era pra dar confiança pro marido dela e então a gente tinha medo. E ele, educado, dizia: senta aqui que eu não vou morder vocês não. Só que a gente não gostava de sentar na mesa. Era só depois dos patrões que a gente comia mesmo”, afirmou. 

Quando patrões saíam, empregada “brincava de ser madame”

Durante a rotina de trabalho, Marli disse que limpava algumas peças da casa e também cuidava das crianças. “Com o tempo foi me batendo uma saudade da casa da mamãe. Foram cerca de dois anos nessa e também fiquei na casa de uma senhora que andava na cadeira de rodas. Ela tinha filhos maravilhosos e foi uma época que eu cozinhava, trabalhava bastante, só que também brincava de ser rica. Os patrões saíam e eu pegava a taça, colocava vinho e me divertia. Só queria saber de ser madame”, argumentou.

Marli recebeu diversas homenagens na Santa Casa, em Campo Grande. Foto: Redes Sociais/Reprodução

Algumas vezes, quando o imóvel estava vazio, Marli até arriscava um pulinho na piscina. “O patrão perguntava porque eu estava de cabelo molhado, a água da piscina balançando e eu dizia que estava começando a limpeza. Eu cozinhava também, me diverti muito naquela casa e depois fui para outra casa de família, já no bairro São Francisco”, relembrou. 

Em todos esses locais, não houve registro em carteira. O salário, de início, não era um valor fixo, só que, na medida que foi mudando de emprego, Marli passou a ter um valor fixo. “Foi só na Santa Casa mesmo que fui registrada. Antes, nunca tinha sido e lá fiquei por mais 36 anos. Tive proposta para trabalhar na casa de uma mulher até no Rio Grande do Sul. Foram muitas aventuras. Sou grata a tudo o que vivi. Na Santa Casa fiz muitas amizades, trabalhei muito e fui feliz lá também. Agora estou curtindo cada momento da minha aposentadoria”, finalizou.

Marli tinha amizades com e eles sempre pediam o cafézinho dela. Foto: Redes Sociais/Reprodução

Dia da Empregada Doméstica

A data é comemorada anualmente no dia 27 de abril e celebra os profissionais que cuidam da organização do lar, preparo de refeições para adultos e crianças, além de outras tarefas para ajudar na manutenção de uma casa. É também uma data para homenagear a Santa Zita, considerada a padroeira dos empregados domésticos.

A Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1978, é que regulamenta a profissão de Empregado Doméstico, estipulando os direitos e deveres deste profissional. Mesmo com a regulamentação, muitos profissionais deste ramo reclamam das condições precárias e insalubres de trabalho.