Miséria e terror: Raíssa viveu 11 anos em barraco até ser estuprada e morta pelo tio em MS
Caso da menina que foi estuprada por grupo e jogada viva de penhasco expõe descaso das autoridades nas aldeias de Dourados
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Visitar o local onde viveu Raíssa da Silva Cabreira, de apenas 11 anos, morta e estuprada pelo tio na Aldeia Bororó, em Dourados, a 225 quilômetros de Campo Grande, revela que a infância da menina não teria sido muito diferente dos momentos finais da sua vida. Ainda criança, ela foi deixada com o tio, com as irmãs, para morarem em um barraco de lona de apenas duas paredes.
No local não há camas, nem rede, nem móveis e nem comida. Em um ‘fogão’ improvisado, que são tijolos ajeitados ao lado de fora da tenda, panelas vazias fazem figuração. No local, a população já passa de 20 mil habitantes e sofre com falta de moradia e de perspectiva de vida. “Faz tempo que estamos vivendo um em cima do outro. Tem barraco que abriga até 15 pessoas e isso é desumano. Nem bicho vive assim”, diz o capitão da Aldeia, Bororó, cenário do crime que chocou a população de Dourados, Gaudêncio Benitez, de 41 anos.
Líder da Aldeia Jaguapiru, vizinha, o capitão Isael Morales, também conhecido como Neco, ressalta que alguma coisa precisa ser feita para diminuir o sofrimento nas aldeias, provocado principalmente pela omissão e pelo descaso das autoridades. “Temos que unir as nossas forças e continuar lutando, mas é uma batalha muito dura porque toda essa realidade de consumo de álcool vem de berço e passa de pai para filho”.
Sem esconder o contexto vulnerável em que estão inseridos, com carência de alimentos e até de água potável, tanto Gaudêncio quanto Neco, são categóricos em afirmar que continuarão lutando para conseguir dias melhores nas aldeias e que a luz no fim do túnel está na educação, que, segundo eles, passa pelo poder público.
“Precisamos sim de comida e de água para matar a nossa fome e a nossa sede, mas também necessitamos de projetos para fortalecer as nossas famílias e impedir que as nossas crianças tenham contato com todos esses males que destroem a nossa comunidade, como o álcool e as drogas”, aconselha Neco.
Segundo o líder indígena, a questão do consumo de bebidas alcoólicas nas aldeias é totalmente aberta e isso não é segredo para ninguém. “Hoje, em qualquer esquina na aldeia é possível encontrar um corote de cachaça. Temos inclusive presenciado crianças e adolescentes carregando kits compostos por um corote e uma garrafa de refrigerante”, conta o capitão.
Apesar da violência parecer banal nas aldeias, a solidariedade ainda pode ser vivenciada. Como forma de levar carinho e conforto, um grupo de mulheres das aldeias, professoras e D. Alda, rezadora da Aldeia Jaguapiru, visitou o barraco de lona onde Raíssa morava com duas irmãs pequenas, para entregar roupas, brinquedos e alimentos arrecadados junto à própria comunidade.
Álcool nas aldeias
Durante apresentação dos envolvidos no crime, Elinho Arévalo confirmou ao Midiamax que agiu sob o efeito de álcool e que todas as vezes que estuprou a sobrinha, desde os 5 anos de idade, ele estava sob o efeito de álcool.
“Era como se o diabo saísse do corote e entrasse dentro de mim”, contou o indígena, que após ser encaminhado para a Ped (Penitenciária Estadual de Dourados), foi encontrado enforcado na sela em que estava, na tarde desta quinta-feira (12).
O delegado do SIG (Setor de Investigação Geral), Erasmo Cubas, confirmou que a maioria das ocorrências que atende em relação às aldeias está ligada ao consumo de bebidas alcoólicas. No caso da morte da menina, ele teve que esperar Leandro Pinosa, de 20 anos, ficar sóbrio, porque quase 24 horas depois, ele ainda continuava embriagado.
Violência
Relatos de lideranças indígenas de Dourados mostram que 99% das ocorrências policiais nas aldeias são motivadas pelo consumo de bebidas alcoólicas e de outras substâncias entorpecentes, como maconha, crack, cocaína. Essas combinações maléficas, aliadas ao descaso das autoridades, transformam a Reserva Federal Indígena de Mato Grosso do Sul em um campo minado.
O problema é antigo, mas é revisitado toda vez que um caso de extrema violência chama a atenção para as aldeias, como o estupro da menina Raíssa da Silva Cabreira, de apenas 11 anos, que começou a ser embebedada na sua própria casa e foi levada à força por cinco pessoas da própria comunidade, estuprada e jogada de um penhasco ainda viva para morrer.
Segundo estudiosos, o alcoolismo associado aos povos indígenas é contemporâneo ao confinamento nas reservas, perda dos territórios tradicionais e esgotamento dos recursos naturais. O estímulo ao consumo de substâncias acaba sendo uma medida de controle social, isolando os índios ainda mais nas reservas, sem acesso à educação e assistência.
“Ao longo da história da colonização do Brasil, o álcool foi utilizado como ferramenta de guerra para vencer os índios, principalmente após a vinda da família real portuguesa para o Brasil. Porém, a disseminação, por parte do Estado, para subjugar os índios, com o álcool, trouxe para dentro das comunidades, consequências nefastas como o aumento da violência”, explica o professor e pesquisador da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Neimar Machado de Sousa.
Em um artigo sobre álcool e drogas, o professor destaca que o uso e abuso destas substâncias tornou-se um significativo problema de saúde pública globalizado com implicações em muitas esferas da vida cotidiana, “pois compromete vínculos afetivos, afeta o trabalho, gera sofrimento familiar, prejudica a saúde, relaciona-se à violência e contribui na disseminação de doenças como o HIV e muitas outras”.
Estudioso dos rituais indígenas, o xamã kaiowá Jorge da Silva, da Aldeia Jaguapiru, explica que o consumo abusivo de álcool decorre de uma ação mágica, ‘ojepotá´, do dono da cachaça, ‘Kanha Jára’, que domina quem a ingere compulsivamente, rindo do seu domínio sobre o descontrole, intoxicação e morte do usuário. No entendimento do ancião, trata-se de uma doença que pode ser curada com o retorno das práticas dos rituais, principalmente o batismo, nhemongarai, e medicamentos tradicionais.
Sob o olhar do capitão da Aldeia, Bororó, cenário do crime que chocou a população de Dourados, esse não é primeiro caso e nem será o último. “Nossa realidade aqui é assustadora mesmo, infelizmente e só não enxerga quem não quer, como o maior dos órgãos públicos que fazem vistas grossas e deixa o nosso povo morrer”, conta.
Gaudêncio diz que o comércio ilegal de bebidas e os pontos de venda de drogas estão espalhados pelas aldeias e que conter o seu crescimento torna-se uma tarefa quase impossível. Além disso, segundo ele, o álcool sempre teve trânsito livre nas comunidades.
“A gente faz o que pode, mas sozinhos praticamente a gente não pode fazer nada. Está tudo dominado”, relata o capitão da Bororó que já perdeu as contas das inúmeras cobranças que faz às autoridades. No entanto, a quantidade de ocorrências não sai da cabeça. “Tem dia que somos chamados para atender até 15 casos de violência doméstica. Quase todos provocados por bebedeiras”, explica o líder da Bororó.
“Se não fosse o Conselho Comunitário de Segurança da Aldeia, nem sei o que seria de nós”, diz Gaudêncio, que agradece a viatura que recebeu da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), mas reclama a falta de combustível e manutenção do veículo. O mesmo acontece na vizinha Jaguapiru.
Para o presidente do Comad (Conselho Municipal de Política Sobre Drogas), Elvio Bogarim, que comanda a entidade desde o dia 24 de maio deste ano, e representa a Polícia Federal, o assassinato brutal ocorrido na última segunda-feira é um claro reflexo devastador do consumo de álcool que atinge toda a sociedade.
“Com relação à tragédia aqui, a gente percebe que ela é só a ponta do iceberg de uma situação que a gente já vive há muito tempo, que é a situação de vulnerabilidade das aldeias onde nós temos uma realidade de extrema penúria, de miséria muito grande. Isso é uma das causas que concorre para o uso abusivo de drogas, principalmente o álcool que é barato e lícito e que está aí à disposição de qualquer indígena”, explica Bogarim.
O conselheiro ainda ressalta que os bares são visíveis em volta das aldeias, onde vendem a bebida alcoólica sem nenhuma restrição, uma vez que é de fácil acesso. “Os efeitos do álcool proporcionam inicialmente uma desinibição e uma euforia. Então, uma pessoa com propensão à violência, sente capaz de praticar qualquer ato. E foi exatamente isso que aconteceu neste caso”.
Bogarim explica que uma das alternativas para minimizar o problema de consumo de álcool nas aldeias é a prevenção em seus múltiplos níveis. A pedido das lideranças indígenas da região de Dourados (MS), foi desenvolvido um programa de prevenção curricular junto às escolas da região baseado em capacitações sobre drogas.
O trabalho é desenvolvido em parceria com profissionais da saúde, educação e segurança. Este programa foi chamado de Tekoha Marane’ỹ, Aldeia sem Males, em referência à importância da promoção das ações em saúde, lazer e conhecimento como fatores de fortalecimento dos jovens.
Acionado pelo Midiamax, o MPF (Ministério Público Federal) explicou que já vem acompanhando a situação de violência nas aldeias de Dourados e que, desde 2012, o órgão atua judicialmente para que as polícias Civil e Militar cumpram a obrigação de prestar atendimento emergencial às aldeias da região sul do estado.
Em relação ao consumo de drogas e álcool, denunciado pelas lideranças e que impacta diretamente no aumento nos índices de violência, o MPF reiterou que, em 2017, conjuntamente com as defensorias públicas do Estado e da União, ajuizou Ação Civil Pública para que os governos Federal, Estadual e Municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao uso de drogas na Reserva Indígena de Dourados.
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