Deise viu pai matar a mãe em aldeia de MS, sofreu mais ao ser adotada e hoje ensina como superar traumas
Os traumas vividos por uma criança podem causar danos irreparáveis na vida de uma pessoa já adulta. Lutar pela vida, perdoar e ser resiliente, foi o que fez Deise Marques dos Santos, de 52 anos, sobreviver à uma infância cruel e violenta em Mato Grosso do Sul. A história da sul-mato-grossense vem à tona no […]
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Os traumas vividos por uma criança podem causar danos irreparáveis na vida de uma pessoa já adulta. Lutar pela vida, perdoar e ser resiliente, foi o que fez Deise Marques dos Santos, de 52 anos, sobreviver à uma infância cruel e violenta em Mato Grosso do Sul. A história da sul-mato-grossense vem à tona no momento em que tortura infantil ganha os holofotes do Brasil, após caso descoberto em Campinas, interior de São Paulo, onde um menino de 11 anos vivia acorrentado em um barril pela família.
Indígena nascida na Aldeia Jaguapiru em Dourados, aos cinco anos de idade, Deise vivenciou um crime brutal. A menina viu a mãe ser morta pelo pai com golpes de facão e se recorda apenas da mãe implorando para os filhos correrem enquanto tentava se proteger atrás de uma frigideira, usada como escudo.
Após a perda da mãe e a prisão do pai, que morreu enquanto estava preso, Deise e os irmãos foram morar com a avó na aldeia onde a vida não era nada fácil. “Vivíamos em uma extrema pobreza e não conseguíamos fazer parte da sociedade. Lembro que minha avó falava que era para a gente cobrar das pessoas que pediam para tirar fotos com a gente. Era um dos meios que ela encontrava para garantir nosso sustento”, comentou. As fotos eram pedidos de turistas que muitas vezes tinham contato com um indígena pela primeira vez.
Deise e os irmãos eram alimentados pela avó quando podiam. Fruto do trauma, ela relembra que até hoje, quando sente o cheiro de alguns alimentos, se recorda da infância sofrida na aldeia. “Eu tenho uma memória viva em mim. Quando sinto cheiro de laranja azeda e de comida azeda, já me recordo daquela época. É instantâneo”, disse.
Infância ‘roubada’
A dificuldade em criar os netos fez com que a avó de Deise os entregassem a outras famílias na esperança de que pudessem ter uma vida e futuro melhor. Deise então foi levada de Dourados por um homem até Campo Grande, onde seria “adotada”, para ser babá de uma menina. Como se já não bastassem os traumas vividos pelas dificuldades na aldeia, Deise passou a ser agredida fisicamente pela mulher que a acolheu.
“Eu não gostava de comer esses doces, tipo brigadeiro, balas, pirulitos. Queria comer manga, mandioca, coisas que eu era acostumada, e a mulher ficava brava por isso. Lembro que ganhei um sapatinho dela, mas como eu não queria usar, porque era uma criança de 5 anos acostumada a andar descalça, ela me surrou com o sapatinho e resolveu que não me queria mais”, relembrou.
A primeira família com quem Deise ficou falou sobre a menina com uma vizinha e a mesma disse que poderia ajudar, pois conhecia uma família tradicional da cidade que ficaria com ela. “Era uma família de posses. Quando eu cheguei com minha sacolinha de roupas e ela [mãe adotiva] me olhou, disse que não queria mais. Mas no fim acabou ficando comigo”.
Dali em diante, Deise teve a sua infância arrancada de si. A menina, que tinha cinco anos, passou a ter que aprender tarefas de adultos, e se não atendesse às expectativas da família adotiva, era frequentemente agredida, punida e também violentada.
“Minha mãe de criação me odiava. Quando íamos para a fazenda ela me colocava de joelhos no quintal, com os braços abertos sob o sol. Eu ficava lá por horas. Se meus braços cansassem e eu os abaixassem, ela me espancava”, relembrou Deise.
A família tinha tanto poder aquisitivo que Deise se lembra que todos iam para uma fazenda de avião. Quando não iam no monomotor, iam de camionete e na oportunidade que tinham, maltratavam a menina.
“Quando viajávamos de caminhonete até a fazenda, eles me colocavam na carroceria sozinha enquanto eles iam na cabine. Eu me segurava para que nada me acontecesse. Passava por sereno, buracos na estrada, até chovia, e eu estava sozinha na carroceria viajando por quatro horas até chegar na fazenda”, contou.
Deise era encaminhada para a fazenda com frequência e por volta dos 10 anos, ela realizava tarefas incompatíveis para uma criança. Ela era obrigada a matar galinhas, alimentar porcos, a cuidar da sede da fazenda, a fazer comida para os peões, dentre outros afazeres distantes de ser a infância que merecia.
Ela relembra que em uma ocasião desabafou com uma empregada e ouviu algo que a atormentou por anos. “Eu perguntei para a empregada o porquê que a minha mãe não gostava de mim. Foi ali que ela disse que a minha mãe suspeitava que o marido dela, meu pai adotivo, poderia ser meu pai biológico, fruto de uma traição”, disse.
Diante daquela suspeita, Deise, que tinha por volta dos 12 anos, passou a ser violentada fisicamente pela mãe e sexualmente por aquele que supostamente poderia ser seu pai biológico.
“Ele me molestava. Quando eu atingi certa idade eu resolvi contar para a minha mãe. Ela quase me matou de tanto me espancar. Ela me apontava como a culpada por aquela situação”, pontuou.
Recomeços e surpresas da vida
Aquela jovem só conseguiu sair de casa quando completou 19 anos. Deise se casou, teve filhos e resolveu retornar a Dourados para saber mais sobre o passado. A avó biológica ainda estava na aldeia e a fez uma revelação.
“Ela tinha uma foto minha e uma da minha mãe com um homem. Ela me disse ‘se um dia você tiver um filho e ele for branco dos olhos claros, saiba que é porque seu pai é branco’. Atrás da foto, tinha o nome dele”, contou à reportagem.
Por sorte, o pai biológico não era aquele com qual ela foi criada e violentada. Era outro. Por 32 anos ela procurou pelo homem da foto, mas nunca o encontrou. Nesse tempo, Deise conta que a mãe de criação passou por uma cirurgia e, diante de um erro médico, vegetou em uma cama por 20 anos até falecer.
“Jamais gostaria que isso tivesse acontecido com ela. Mesmo diante de tudo o que vivi, eu não guardo rancor. Como eu poderia viver com ódio no meu coração? Aprendi com a vida, eu acredito que nasci resiliente para conseguir sobreviver a tudo o que passei”, pontuou.
Morando em Florianópolis, Deise trabalhava em uma firma e contou para colegas de trabalho que procurava pelo pai biológico. Com a ajuda da SOS Desaparecidos da PM da capital catarinense, não levou uma semana para que o homem da foto ao lado de sua mãe se materializasse e seu sonho fosse realizado.
“Com sete dias eles encontraram ele. Descobriram que ele morava em Curitiba. Consegui entrar em contato, fui conhecer ele. Lá fizemos o DNA e só confirmou tudo. Eu era filha dele”, disse.
Deise atualmente mora em Florianópolis com o marido e um filho, ministra palestras e é empresária. A filha vive em Campo Grande e trabalha na linha de frente contra a Covid-19 na saúde pública, atuando como enfermeira. Ela afirma que lutar pela vida sempre a manteve em pé e as dificuldades nunca foram capaz de a abalar.
“Tem uma frase que eu mesma criei que diz: ‘Deus nos deu esta vida para nos elevarmos espiritualmente, fazer o bem e sermos felizes’. É nisso que me baseio”, finaliza. Deise não mantem mais contato com a família de criação desde a morte dos pais adotivos. Apesar de ricos e influentes, Deise jamais foi oficialmente adotada e não herdou nada daqueles que a criaram.
Hoje ela trabalha com jovens em situação de vulnerabilidade social, ministra palestra sobre a vivência para adolescentes do ensino médio, para mulheres e também nas aldeias Guaranis Kaiowás. Além disso, ministra curso para secretariado, garçom e garçonete, secretária do lar, decoração de vitrines, cerimonial e protocolos de eventos.
Como denunciar
Caso o morador se depare com situações de abuso e exploração infantil, as autoridades devem ser acionadas. Para isso, existe o ‘Disque 100‘ – o disque denúncia é gratuito e anônimo. A denúncia é registrada e encaminhada ao órgão responsável.
O Ministério Público do Trabalho recebe denúncias online. Basta fornecer as informações na página do MPT. Órgãos que também recebem denúncias:
- Conselho Tutelar
- Secretaria de Assistência Social
- Delegacia Regional do Trabalho
- Ministério Público do Trabalho
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