Negacionismo frustra autoridades de Saúde e exige entendimento sobre ‘novo mundo’
Rejeição à existência do coronavírus dificulta combate à doença; para psicólogo, fenômeno vem da perda de referências e deve ser entendido.
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“Vale tudo para aumentar o número de ‘casos’”. “Não dá mais para acreditar nesses boletins”. “Isso é pura politicagem”. “Pode ter certeza que não morreu de Covid”.
Estes são apenas alguns dos muitos comentários em reportagens do Jornal Midiamax publicadas em redes sociais, que escancaram não apenas a descrença, mas um puro negacionismo em relação ao novo coronavírus, que já totalizou mais de 7 mil infectados e se aproxima de 80 mortes apenas em Mato Grosso do Sul.
Mesmo diante da escalada da doença e de uma lotação de leitos clínicos e de UTIs reservados para pacientes da Covid-19 –situação que, o início de junho, parecia impensável diante de taxas de ocupação inferiores a 2%–, de reportagens diárias de diferentes veículos de comunicação e de relatos nas próprias redes sociais de famílias devastadas com a perda de parentes ou amigos, é grande o número de pessoas que dizem duvidar da existência da doença.
Tal fato não passou despercebido pelas autoridades de Saúde locais –elas mesmas criticadas por medidas adotadas ou não realizadas para conter a pandemia–, que veem nesse movimento negacionista mais um obstáculo para que o isolamento social, única ferramenta eficaz até aqui contra o coronavírus (para o qual não há vacina ou medicamento com eficácia 100% comprovada cientificamente), seja levado a sério.
“Esse negacionismo ajuda a contribuir. Sabemos que têm muita gente que nega a doença, que não acredita nela. Tive contato até com idosos, empresários, que dizem não acreditar nessa doença”, afirmou o secretário de Estado de Saúde, Geraldo Resende, reiterado ter em mãos números diários que mostram o avanço do coronavírus.
“Uma tarefa que tem sido feita exaustivamente está sendo em vão, como se estivesse pregando para o deserto. As pessoas só parecem que vão acreditar se algum ente querido, muito próximo, for de fato acometido [pela Covid-19) e, logicamente, se essa pessoa tiver um desfecho desfavorável”, prosseguiu Geraldo, reiterando que, apesar do prognóstico pessimista, autoridades mundiais como o presidente Donald Trump (EUA) mudaram sua visão e reconheceram o risco da Covid. “Enquanto aqui no Brasil continua a politização da doença”.
O titular da SES ainda apontou “a dubiedade de orientação em nível federal”, favorável à flexibilização da quarentena e do isolamento social –em contraponto ao que defendem secretários de Saúde–, como citado em discursos do presidente Jair Bolsonaro, como agravante para a situação.
Infectologista da pasta, Mariana Croda compara a situação a uma corrida de obstáculos sabotada. “Já sabemos o que temos de pular, mas alguém foi lá e pôs a barreira mais alta”, disse.
A ideia ilustra um trabalho de enfrentamento à pandemia, “mas toda essa rede de negacionismo vem e nos consome, porque você tem de desviar o foco para dar uma informação que, de alguma forma, convença que a doença existe. Enquanto infectologista, nunca vivi um enfrentamento tão grande [referência ao combate à doença], realmente desafiador enquanto manejo clínico e que consome forças que deveríamos reunir neste momento”.
Ser humano está cansado e sem ‘norte’, afirma infectologista
Mariana faz uma análise sobre como as pessoas enfrentam o período de pandemia. “Todos estão cansados. Esta é uma epidemia de várias dores”, afirmou, referindo-se diretamente à sensação de, diariamente, realizar uma contagem de infectados e mortos –e que, ainda em março, levou ao esgotamento de profissionais de Saúde que tiveram de licitar a compra de sacos para armazenar cadáveres da doença (em número superior ao de óbitos até aqui).
Ao mesmo tempo, a profissional de Saúde vê os seres humanos “sem norte, sem enxergar o fim da linha. Como ser humano, tem de trabalhar com objetivos, e se cansou. Então, prefere se apegar a um medicamento milagroso, a uma teoria da conspiração ou qualquer coisa que, em algum momento, vai acabar mostrando que isso, em algum momento, vai acabar”.
Essa “dor”, prossegue ela, inclui a das pessoas que perderam um ente querido, profissionais de Saúde esgotados e também “quem tem um comércio fechado, não consegue dinheiro para pagar as contas e passa necessidades”. “Mas o que me choca é a parte da população que não tem nada disso, pode realmente ficar em casa e evitar pegar a doença e não o faz”.
“Quem pode deveria ficar em casa e evitar aglomerações, porque assim ganhamos tempo. Não tem vacina, não tem tratamento e, agora, quase não temos um leito de UTI. Burlar a única medida eficaz, que é o isolamento social, é uma roleta russa, uma escolha burra”, disparou.
‘Sofrimento antropológico’ explica negacionismo, afirma psicólogo
O psicólogo Dionatans Godoy Quinhones afirma que os fatos experimentados na pandemia, especialmente o isolamento social, são novos para o brasileiro. Sua gravidade acaba produzindo o que, no ramo da Psicologia, chama-se de “sofrimento antropológico”.
“Trata-se da perda das referências que a pessoa constitui para si nas relações sociais. Por exemplo: imagine um cantor que trabalha na noite. Essa é sua referência social, ele constitui relações sociais pautadas nessa informação, que compõem sua personalidade e o marcam. Em uma situação de isolamento social, isso é tolhido. Sou obrigado, por forças externas, a abandonar um contexto que me define”, explicou, reforçando que o exemplo veste diferentes profissões, atividades e personalidades.
Ao chegar nesta situação semelhante ao luto, explicou Dionatans, o indivíduo busca estratégias para lidar com o momento, seja por meio da ressignificação ou da confluência –quando se buscam experiências anteriores a fim de buscar justificativas para manter sua condição anterior –por meio de discursos, afetos ou mesmo justificativas de outros. É uma “relativização” de um discurso que a pessoa considera opressiva, por meio da busca de argumentos que o enfraqueçam.
“‘Não posso ir nos bares à noite, mas as pessoas podem ficar na fila do banco’. São argumentos que não tocam o problema de forma profunda ou técnica, mas tem a função de garantir que a construção que tenho, que me define e de onde tiro significado para minha existência possa permanecer”, explicou.
Fenômeno impede analisar pessoas pelo viés moral
Dionatans lembra que a formação negacionista, muitas vezes, ocorre de forma involuntária, o que impede seu tratamento pelo viés moral. “É um fenômeno psicológico, mas não basta dizer isso e acabou. Continua sedo um problema”, destacou. A opção, prosseguiu o psicólogo, é trabalhar a informação de forma que atinja afetivamente tais pessoas, de forma a conseguirem enxergar o contexto no qual estão com empatia.
“Posso estabelecer como regra o ‘fique em casa’, mas em nenhum momento se vê preocupações com as pessoas em casa. Como lidar melhor com isso? Que cuidados ter? Como garantir a subsistência? Esses modos de apresentar as situações constroem a relação empática com o contexto e podem influenciar as pessoas a ressignificarem o momento”.
O psicólogo afirma, ao mesmo tempo, que não é recomendado evitar dar a dimensão do problema, como nos casos de apelos para que não se foque no número de novos casos, e sim de curados de Covid-19. “Mostrar o pior cenário é uma estratégia necessária, mas não a torna mais fácil de ser significada e absorvida”. Exemplos como o próprio engajamento social na pandemia são algumas das saídas nesse trabalho, sugere Dionatans.
Argumentos que minimizam o atual momento da sociedade, frisou o psicólogo, corroboram o apelo àquilo que “não existe mais”.
“Uma coisa a que as pessoas resistem é entender que aquele mudo que existia antes da pandemia, de se publicizar o coronavírus e iniciar o isolamento social, ele já passou e não existe mais. Temos outro mundo, pós-pandemia, onde temos de repensar as regras sociais, de trabalho, as dinâmicas de interação social. Esse mundo é novo”.
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