Relatos falsos ‘roubam clientes' e objetificam mulheres

Um site que reúne ‘avaliações' de experiências sexuais com riqueza de detalhes tem causado briga entre garotas de programa e a cafetinagem que atua em . Os relatos revelam como as mulheres são tratadas pelos clientes, e passaram a ser usados pelos cafetões com notas falsas para promover as profissionais do sexo que trabalham para eles.

Que a internet é campo aberto para a pornografia e , a gente sabe desde seu surgimento. Ao longo dos anos, inclusive, a tecnologia mudou um pouco a relação entre as garotas de programa, atividade legal no País, e os exploradores da prostituição, que, apesar de ser atividade criminosa, continuam a olhos vistos. Os sites onde as mulheres se ‘vendem', ou são vendidas de forma disfarçada, são inúmeros, e configuram verdadeiro mercado virtual dos serviços sexuais profissionais.

Nesse nicho, há espaço para tudo, até para um fórum onde os clientes ranqueiam as mulheres, de todo o País e de Mato Grosso do Sul, com espaço diferenciado para as cidades do interior e a Capital. Ali, são dadas notas baseadas em conceitos que podem ser considerados no mínimo desrespeitosos e misóginos, termo que inclui entre os significados o desprezo às mulheres. Ali, também fica evidente que a cafetinagem está viva no meio em que o produto vendido é o sexo.

Trata-se do GPGuia.net (Garotas de Programa), um fórum onde há avaliação de tudo, de garotas de programa a casas de prostituição, com endereços e telefones. Fala-se de preço, uma variável entre R$ 50,00 e até R$ 350,00 por programa, de qualidade do serviço e das características físicas das “GP`s”, como as profissionais são classificadas.

Tem até indicação de depilação masculina, com a anotação se as profissionais responsáveis pelo serviço são ou não “gostosas”.  Há espaço para anúncios e, sua descrição o fórum deixa claro não se responsabilizar por comentários difamatórios. Ele é administrado por homens, segundo definição de um perfil no Twitter, que foi contatado pelo Jornal Midiamax, mas não deu retorno até o fechamento desse texto.

Nos tópicos do fórum dedicados às garotas de programa, chama atenção a forma como os supostos clientes definem as mulheres. A objetificação, termo bastante usado pelos movimentos de defesa dos direitos das mulheres, é evidente. Os programas viram “testes drives”, ou apenas TDs, e há uma espécie de formulário a ser preenchido, informando se fazem sexo anal, se fazem oral sem camisinha, se beijam na boca, se são ‘limpas', malhadas, como se comportam durante o programa.

A avaliação final é se o serviço merece recomendação. Para uma mulher, ver como as outras são definidas soa agressivo. Pela observação da reportagem, sexo oral sem camisinha é algo corriqueiro, indicando um comportamento de risco, para atender o gosto dos clientes.

“Perva” é um dos adjetivos publicáveis pelo qual os participantes do fórum se referem às mulheres contratadas por eles para fazer sexo. “Mandou foto pelo Whats, dava pra pegar pela foto, chegando lá quarto quente, ventilador, e uma gorda”, diz um cliente sobre uma garota. “Pensei, já to no inferno, vou abraçar o capeta”, prossegue. “Pior GP que já peguei, oral horrível, rápido. Sem capote [camisinha]. Mas horrível”, encerra.

Padrões

É possível perceber que, no mundo da prostituição, repete-se o gosto padronizado por mulheres jovens, magras, malhadas e brancas, sem barriga, de bunbum perfeito e seios idem. “Recebi um whats de um cafeta com novidades, algumas das minas já conhecia, tinha 3 que não conhecia, em contato com o mesmo ele me indicou a XXXX, uma branca de cabelos pretos longos, pelas fotos linda, resolvi arriscar”, relata um integrante do fórum. A descrição do encontro revela o gosto comum: “chega a mina, uma branquinha, cabelão preto longo até a bunda, sorriso lindo, espantei porque estava mais bonita que nas fotos”.

Todo o ato sexual é descrito. Em quase todos os relatos, o cliente encerra dizendo que ‘pagou e vazou'. Depois vem a parte das notas. A maioria tem tantas expressões chulas que foi difícil encontrar um exemplo para usar. Nesse caso, foi assim: “rosto: 10, linda demais; corpo: 9, precisa puxar um ferro; bunda: 8 bonita no estilo popozão mas não tão grande; seios 9: ainda lindos”.
 
Como se lê nessa descrição, fica claro, também, que a atuação de cafetões e cafetinas é de conhecimento de todos. Há tópicos dedicados apenas a avaliação de ‘inferninhos, em Campo Grande e no interior.  Na região pantaneira, descrevem-se casas especializadas em atender ‘pescadores'.

Na Capital de MS, a reportagem identificou mais de 20 endereços citados. A existência deles chega aos clientes geralmente no ‘boca a boca', virtual ou ao vivo, mas também há propaganda em locais de circulação pública. “Estava eu almocando em uma peixaria em CG, quando resolvi ir ao banheiro, no balcão estava um montinho de cartões, quando peguei um e logo vi do que se tratava, um cartao preto com o num xxx e dois numeros de telefone, entrei em contato e quem me atendeu foi um menina chamada xxxx, pedi para me explicar como funciona e se poderia me mandar fotos pelo whats, ela me informou que se tratava de um sobrado novo no bairro Monte Castelo e o valor do programa era 200,00, incluso o local”.

Mesmo quando a análise é das casas de prostituição, a nota para as prostitutas está lá, em um dos casos acompanhada de uma observação de que garotas de fora costumam ser melhores. “O que me deixa grilado é que tem de vir moças de fora para atender bem”, questiona um internauta no fórum.

É legal?

Dez anos atrás, um oficial da Policia Militar de Mato Grosso do Sul foi condenado por manter um site chamado ClassysexyMS, onde era feita propaganda de serviços sexuais. À época, o principal problema apontado era o comércio exercido por militar, o que é vetado. O site saiu do ar logo que a denúncia foi feita pelo MPE (Ministério Público Estadual). Diante de conteúdos como esse do GPGuiaNet, a reportagem do Jornal Midiamax procurou autoridades para saber se esse é um conteúdo legal e se as informações que deixam clara a existência de cafetões podem basear investigações. A Polícia Civil prometeu se manifestar nesta quarta-feira sobre o assunto.

No Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa da Mulher), mantido pela Defensoria Pública, o entendimento é de que, se configurada a atividade de manutenção de casa de prostituição, é possível tanto uma ação criminal quanto uma de indenização, por parte das vítimas.

Ainda de acordo com o Núcleo, “se a mulher que foi envolvida no referido fórum, de alguma forma consentiu às publicações e avaliações, entendemos que não há que se falar em crime ou qualquer indenização, uma vez que faria parte da publicidade do negócio em que ela se propôs a fazer”. A nota enviada pelo núcleo prossegue lembrando que “a prostituição voluntária não é crime, se trata de um trabalho liberal, onde a pessoa se sujeita a certas avaliações, sempre dentro do consentimento, já nos casos em que não haja consentimento e que a pessoa envolvida sinta-se prejudicada, cabe a mesma procurar as medidas judiciais cabíveis.”

Informada sobre a existência do fórum pela equipe do Midiamax, a subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres, Luciana Azambuja, pontuou que toda “ação, ou toda omissão, que busque desqualificar a mulher, é passível de diálogo para represssão, porque o que a gente tem que fazer na construção das políticas públicas, é o fortalecimento da mulher”.  Na avaliação dela, “não parece justo, dar nota ou ranquear nenhum seguimento de mulheres”.

Assim como o Núcleo da Defensoria Pública dedicado à mulher, Luciana Azambuja reforçou o fato de que a prostituição por escolha da mulher não é crime. “Sobre a mulher ser ou não prostituta, porque ela quer ou porque ela não teve outra oportunidade, porque ela precisa, a discussão perpassa um pouco mais pra baixo, pela alta de políticas públicas, pela desigualdade de oportunidades de direitos entre homens e mulheres”.

Tanto a Secretaria quanto a Defensoria alertaram que os dois órgãos estão à disposição de mulheres que se sintam prejudicadas.

Pela lei, explorar ou incentivar a prostituição pode ser enquadrado em dois crimes. O primeiro, definido no artigo 228 do Código Penal, é o de de rufianismo, caracterizado por indução ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone, com pena inicial de 2 anos, e máxima de 8 de reclusão. O outro crime, o de lenocínio, está tipificado no artigo 230 do Código, como “tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça”. Nesse caso, as penas previstas vão de um a 8 anos. Um dos agravantes, nos dois casos, é se a exploração é feita por parente próximo.

O que diz uma profissional?

Na internet, é possível encontrar postagens de profissionais do sexo revoltadas com o guia virtual. O Midiamax conversou com uma das garotas de Campo Grande citadas no fórum. Aos 36 anos, ela diz estar na fase ‘terminal' da profissão e conta que, quando começou a ser citada, positivamente, teve até de recusar clientes. À época, contou, era classificada pelos integrantes do fórum como o “melhor sexo oral” da cidade.

No relato dessa garota de programa, novamente a atividade da cafetinagem aparece como algo comum. Segundo ela, as avaliações individuais começaram a incomodar cafetões da cidade. A estratégia deles, conta, foi de passsar a criar perfis falsos e avaliações extremamente positivas das garotas ligadas a eles. Os telefones fornecidos, segundo essa fonte, são dos cafetões, e assim que as meninas são substituídas, por não renderem mais tanto aos exploradores, trocam de mãos.

Nesse mercado, explica a profissional ‘em fim de carreira', o valor de mercado aumenta tanto mais jovens são as profissionais. E consequentemente, diminui quando mais velhas.

Escolhemos publicar essa reportagem no Dia Internacional da Mulher justamente porque ela retrata, a partir de um universo marginal da sociedade, muito do que o mundo feminino ainda enfrenta em geral.