Recado é para o mundo todo, avaliam

Levantar escombros com as mãos e tentar alcançar a sobrevivência. Abrir a janela de casa sem saber até quando a casa vai estar no lugar. Agora, com as mãos, eles levantam uma bandeira com duas estrelas verdes: a bandeira da Síria, ao comemorar a resistência da jovem Yusra Mardini, de 18 anos, que venceu a primeira bateria de sua prova de natação nas Olimpíadas Rio 2016.

Quem faz a comparação são dois refugiados sírios que agora vivem em  em busca de reconstruir, de algum modo, uma terra que “deixaram para trás”. Para Alassaf e Ualid, Yusra Mardini manda uma mensagem para o mundo: a Síria ainda vive.

Nessas olimpíadas, uma das novidades é o time de refugiados do Comitê Olímpico Internacional (COI) que tem entre as estrelas, dois nadadores sírios: Yusha e Ramis Anis. A jovem de 18 anos, no entanto, brilha mais aos olhos dos dois refugiados, já que, literalmente, Yusra nadou para viver.

Em agosto de 2015 Yusra e a irmã decidiram deixar o país, cuja guerra, que envolve o atual presidente Bashar al-Assad, grupos de rebeldes, o grupo radical sunita Estado Islâmico (EI) e grandes potências com interesses geopolíticos, como Estados Unidos e Rússia, já matou 470 mil pessoas até o mês de fevereiro, segundo estimativa do jornal inglês The Guardian.

Yusha nadou pela vida. Não apenas a própria vida, mas a de outras 19 pessoas que estavam em um bote no mar Egeu, que saiu da Turquia com destino a Grécia. O motor da embarcação parou de funcionar, enchendo o bote de água. A jovem, a irmã e mais duas pessoas nadaram durante três horas puxado o bote para chegar até a ilha de Lesbos, na Grécia.

“Os sírios estão chorando, estão muito bravos, mas quando eles veem essa menina eles criam energia dentro dos corações e dizem: a Síria vive, a Síria não vai morrer. Eu estou muito feliz. Agora eu quero ir lá para o Rio de Janeiro com bastante pessoas Sírias refugiadas aqui, quero ir lá dar um abraço neles, dar força e dizer: nós estamos com você também, você não está sozinho aqui. Nós, sírios, estamos com você”, diz Alassaf, emocionado.

Alassaf era cantor em Damasco, capital da Síria e patrimônio histórico do país. Ele foi perseguido pelo EI, que reivindica para si um califado, forma de Estado dirigido por um líder político e religioso de acordo com a lei islâmica, a sharia.

Ele, a esposa, que está grávida, e dois filhos pequenos vivem agora em Campo Grande, onde o cantor tornou-se o proprietário do restaurante “Delícias Árabes Originais”.

 

 

Alassaf (Guilherme Cavalcante)

 

Foi no ramo culinário que Ualid reencontrou o caminho para a “vida que tem que continuar”, como ele mesmo diz. O sírio, assim como Alassaf, é dono de um restaurante árabe na capital, o Tabacaria da Síria. Ualid, no entanto, ainda sente-se na “fronteira” entre o Brasil e a Síria, já que a esposa e as duas filhas ainda vivem na cidade de Al-Swida, no sul da Síria, aguardando a permissão do Brasil para viverem no país como refugiados.

Nós ainda estamos aqui

Apesar da saudade da família, Ualid estampa um sorrido no rosto e afirma: orgulho. “Me sinto orgulhoso”, diz, ao pensar na Síria, representada no time de refugiados.

Ualid (Luiz Alberto)“Estou orgulhoso porque é como sair de um lugar que está morrendo e recomeçar a vida. Essas são as pessoas. É a mensagem que elas estão enviando para o mundo, para todo o mundo. Nós ainda estamos aqui. Nós ainda estamos vivos. Nós ainda podemos fazer alguma coisa. Essa é a mensagem, por isso estou orgulhoso”, declara.

Não há como um brasileiro entender o que passa um refugiado Sírio. O que sente uma pessoa que aprende a levar o país apenas no coração, ao ver as paredes de construções históricas, as pessoas amadas, e toda uma população desaparecer em meio a um conflito que não escolheu. É o que explica Ualid: “Você não pode imaginar. Você não pode. Você pode tentar imaginar, mas você não consegue. Porque você não consegue sentir exatamente o que é”.

Ualid perdeu um primo e o cunhado na guerra civil que já dura cinco anos. Na cidade onde a família vive, um núcleo do EI controla um território a apenas 10 quilômetros de distância.

“Eles estão em perigo?”, pergunto a ele. No que ele responde: “Até agora não, mas é a Síria, não sabemos até quando estarão a salvo”.

“O sangue sírio não tem valor pra eles [Estados Unidos e Rússia]. Porque o sangue está escorrendo no meu país, nosso sangue, não o sangue deles. Os americanos e os russos não estão morrendo lá. Um milhão de pessoas estão morrendo, sírios, e mais de 10 milhões refugiados, e a Síria tem muitos lugares demolidos, muitas cidades demolidas. Nós apenas dizemos: tinha uma cidade aqui e agora não tem mais”, conta.

Para Alassaf, no entanto, se o povo Sírio, ao mostrar a bandeira, temia a violência do EI, agora levanta o símbolo com orgulho. “Quando a nadadora chega em primeiro lugar nessas olimpíadas, todos os Sírios veem o jornal, assistem a TV, quando virem chegar em primeiro… agora eles estão muito bravos, muito tristes, porque vida deles, país deles está sendo destruído, mas quando uma  pessoa mostra a bandeira deles nas olimpíadas todos os sírios esquecem a guerra e falam: Síria! Síria! Síria!”, diz, com orgulho.

Os desafios no novo país, em que se busca de alguma forma construir um território novo, misto entre Brasil e Síria, são muitos. Alassaf revolta-se ao ver um país rico, de “terra boa”, ter tantas pessoas pobres. Ele lembra da desigualdade social do Brasil ao afirmar que “muitos queriam ir ao Rio da Janeiro mas nem todos podem”.

Ualid, por sua vez, ainda não completou o novo caminho, já que a família está longe. “Sim, a vida é muito complicada, porque eu sinto falta da minha família e há dois dias estamos com alguns problemas na minha cidade, o governo tirou a internet, você não tem outro jeito de falar com eles, eu estou esperando, eu estou ansioso. A vida fica muito complicada quando alguém que você ama mora longe”.

O documentário “The suffering grasses”, que em livre tradução significa “A grama que sofre”, afirma que “quando os elefantes lutam, quem sofre é a grama”, ao retratar a vida da população vivendo em meio à guerra. Mas para esses dois sírios que vivem na capital de Mato Grosso do Sul, uma nova grama cresce no chão.

“Nós precisamos enviar essa mensagem. Por que estou orgulhoso dessa menina? Estou orgulhoso dela porque essa menina está dando à mim e às pessoas sírias a oportunidade de enviar mensagem de que queremos uma vida normal, de que nós estamos aqui ainda. Toda a guerra nos esqueceu. Nossos problemas podem ser resolvidos, mas eles não querem resolver esse problema, porque eles não se importam com o sangue sírio. Mas agora, nós mandamos uma mensagem pro mundo:  estamos vivos. Nós ainda estamos vivos. Nós podemos construir uma vida nova”, finaliza Ualid.