Sobreviventes de Mariana viram estranhos na própria terra
Moradores vêem recomeço que vai muito além de um teto
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Moradores vêem recomeço que vai muito além de um teto
Um mês após maior desastre ambiental da história brasileira, moradores da devastada Bento Rodrigues vêem que recomeço vai muito além de um teto: deslocamento forçado para cidade criou incerteza, estranhamento e angústia.
Os dias são tediosos, passados entre trâmites burocráticos e um quartinho de 12 metros quadrados que divide com o marido e o filho de 3 anos em um hotel do centro de Mariana. E as noites são longas. A comerciante Alecsandra Martins da Silva, de 36 anos, diz não conseguir dormir há um mês. Passa as madrugadas em claro, incomodada com o ruído dos carros que circulam pelas ladeiras íngremes da cidade de Mariana.
Ela sente falta do silêncio de um lar que teme jamais recuperar: o pequeno povoado de Bento Rodrigues, completamente apagado do mapa de Minas Gerais no último dia 5 de novembro. Foi quando o rompimento de uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco provocou um tsunami de 50 milhões de metros cúbicos de lama – algo equivalente a cerca de 20 mil piscinas olímpicas –, devastando cidades, matando pelo menos 13 pessoas e deixando centenas de desabrigados.
O episódio ficou conhecido como a “tragédia de Mariana”, embora a cidade histórica não tenha sido afetada. Na rota do mar de lama estavam distritos nos arredores, como Bento Rodrigues, Paracatu, Pedras, Águas Claras, Ponte do Gama e a cidade de Barra Longa. Gente como Alecsandra saiu de casa correndo apenas com a roupa do corpo. Agora, presas às lembranças do passado e às dificuldades do presente, essas pessoas não conseguem imaginar o futuro.
O recomeço vai muito além de um teto. Além do trauma de sobreviver ao desastre, o deslocamento forçado do campo para a cidade criou incerteza, estranhamento e angústia. Eles tinham uma vida pacata em pequenos povoados, trabalhavam com a terra, conviviam com os animais e faziam dos vizinhos uma única grande família. E, por isso, sequer cogitam permanecer numa cidade como Mariana, de 60 mil habitantes – pequena para os padrões brasileiros, mas uma megalópole para os moradores da roça. A tragédia fez dos desabrigados uma espécie de estrangeiros, quase párias, em sua própria terra.
“Só tive tempo de entregar meu filho ao marido pela janela e sair correndo para o pasto, mais alto, no pé do morro. Nunca imaginei uma coisa assim. Agora estamos aqui, no hotel, esperando ver para onde ir. Não vai ser um lar, mas pelo menos uma casa, né? Aqui na cidade grande é muita confusão, muito barulho o tempo todo. Só quero voltar para a paz de Bento”, diz Alecsandra, que tinha uma lanchonete no povoado de 600 habitantes.
Passado um mês do rompimento da barragem de Fundão, 200 famílias desabrigadas, atingidas diretamente pela maré de barro que mistura óxido de ferro e areia, tentam reconstruir suas vidas lentamente. E com pouco. A maioria está temporariamente alojada em hotéis à espera de ajuda financeira e de uma nova casa. A Samarco provê a alimentação. Roupas são recolhidas num centro de distribuição de donativos, e é preciso paciência para enfrentar a burocracia do cadastramento de dados que permitirá a cada família uma ajuda de um salário mínimo por mês (788 reais), acrescido de 20% por cada dependente, além de uma residência definitiva.
“Estou meio desorientado”
“A gente não conhece ninguém aqui. Eu cresci na roça e quero criar a minha filha na roça, solta, com os amigos da vizinhança. A Samarco tem que cumprir o prometido e fazer uma Bento Rodrigues igualzinha. Com as casas iguais e os vizinhos no mesmo lugar”, exige a manicure Lorestéfani Ferreira, de 21 anos, com a filha Melissa, de 1 ano, nos braços enquanto garimpa doações de roupas. “Aqui na cidade as coisas são muito caras. Lá em Bento a gente pegava as verduras no quintal. Aqui, três pés de alface custam R$ 10. Tenho medo de voltar para a roça e passar aperto de novo, mas tenho mais medo ainda de ficar aqui em Mariana e não conseguir trabalho para pagar as contas”.
A sensação de estranheza domina até quem já conseguiu uma nova moradia. Também ex-moradores de Bento Rodrigues, o casal de agricultores Durvalino Gonçalves, de 73 anos, e Maria Gomes, de 70, foi um dos primeiros a deixar o hotel, 11 dias após o acidente. Eles receberam da Samarco uma casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro no centro de Mariana. Quando chegaram, se surpreenderam: o espaço já estava mobiliado com cama, guarda-roupas, mesa, sofás e televisão. Sobre o fogão, havia panelas novas e utensílios domésticos. A geladeira estava cheia de verduras e carne, e provisões enchiam os armários. Demorou dois dias para o entusiasmo passar. As novidades logo viraram melancolia.
“Eu estou meio desorientado, sabe? Os dias aqui na cidade não passam nunca, demora muito. A gente acorda, come, vê televisão e demora para chegar a noite. Não tenho nada para fazer. Eu almoço todo dia e saio para fazer uma caminhada, mas e depois? Eu queria mesmo é tudo que tinha em Bento. Minhas coisas, as fotos dos meus filhos e os amigos por perto. Eu sempre tinha que ajudar alguém ou sempre tinha alguém vindo na minha casa”, conta ele.
Dona Maria faz coro: “na roça é muito melhor. Lá eu tinha meu pezinho de milho, quiabo, minhas folhas. Agora tem que ter paciência para esperar uma nova Bento, né? Tenho fé em Deus que nós vamos voltar para nossa terrinha”, diz ela, com um sorriso esperançoso.
Atender a todos é um processo moroso. Até agora, 72 famílias já se mudaram para novas casas, e a Samarco, pressionada pelo Ministério Público, promete reassentar 25 famílias por semana, até meados de janeiro. Os contratos têm duração de um ano, período em que a mineradora vai arcar com todos os gastos, além de conceder a ajuda mensal, paga através de um cartão de débito. A longo prazo, a ideia é que os dois povoados devastados, Bento Rodrigues e Paracatu, sejam reconstruídos em regiões próximas aos originais. Mas ainda não há qualquer prazo para que isso aconteça.
A prefeitura de Mariana teme pela adaptação dos moradores durante esse período de espera. Uma equipe de oito psicólogos foi mobilizada para acompanhá-los e aguarda, ainda, um pedido de reforço feito à mineradora para reforçar a equipe. O objetivo é prestar apoio psicossocial e, junto com outros órgãos municipais, impedir que o abalo da tragédia e a sensação de não pertencimento à cidade evoluam para transtornos mais graves.
“Estamos preocupados porque sabemos que muita gente vai ter dificuldade de se acostumar. A casa é uma referência muito significativa, e perder isso causa um abalo. Uma comunidade como Bento tem 200 anos de história e uma associação comunitária muito forte. Tem uma fase de assimilação, de processar o luto. Nosso foco agora é agir em duas áreas, na preservação da memória da comunidade e na criação de novos laços comunitários, na reintegração aqui em Mariana”, explica Sérgio Rossi, psicólogo da Coordenação de Saúde Mental do Município.
Buscas por desaparecidos
O reassentamento e reintegração dos sobreviventes, assim como os debates sobre a futura indenização a ser paga pela Samarco por crime ambiental, são prioridade. Mas não as únicas. Há também a necessidade de um plano concreto de recuperação ambiental de toda a bacia do Rio Doce e, ainda, a tarefa de buscar desaparecidos.
Um mês depois do acidente, 11 corpos foram identificados, dois ainda aguardam identificação e oito pessoas continuam com paradeiro desconhecido – cinco funcionários da mineradora e três moradores de Bento Rodrigues. As buscas se estendem até agora, sob o comando de 30 homens do Batalhão Emergências Ambientais do Corpo de Bombeiros.
“Nossa maior dificuldade é a distância. Estamos vasculhando uma área de mais de 300 quilômetros de raio, porque a avalanche de lama arrastou tudo para bem longe. Temos o apoio de cães farejadores para identificar qualquer indício de corpos. A lama também é um problema. Por cima, parece seca, mas é apenas uma camada fina. Quando se pisa, é como areia movediça”, afirma o capitão Thiago Miranda, do Corpo de Bombeiros de Mariana.
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