A nota de Barra Torres, divulgada anteontem, foi além e revelou um enfrentamento público. Ele cobrou retratação do presidente, que questionou os “interesses” de integrantes da Anvisa em aprovar a vacinação de crianças contra covid-19. Na semana passada, Bolsonaro também afirmou que a agência “virou outro Poder no Brasil” e que seus técnicos são “pessoas taradas por vacinas”.

“Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, senhor presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa, aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que, com orgulho, eu tenho o privilégio de integrar”, disse Barra Torres no texto.

Ele deu tom desafiador e pessoal à nota, assumindo para si uma insinuação que Bolsonaro fez genericamente à Anvisa. Na assinatura e no texto, destacou o cargo militar de alta patente e o elo com a , reproduzindo um comportamento comum nas Forças Armadas de tentar preservar a imagem pública da instituição e de sair em defesa dos “comandados”, o que tem lhe rendido apoio dentro da agência.

A carta expõe de maneira clara a mudança na relação antes de amizade que dizia ter com Bolsonaro. O contra-almirante foi escolhido em 2019 para ocupar uma das diretorias vagas na Anvisa Foi nomeado em julho e, após cinco meses, assumiu como chefe substituto.

Alinhamento

Quando veio a pandemia, Barra Torres agiu de forma alinhada às posições bolsonaristas — ao menos no começo. Ele chegou a participar, sem máscara, de um ato antidemocrático, que pregava o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Um ano depois, em maio de 2021, o almirante disse à se arrepender do episódio. Afirmou ainda que as críticas de Bolsonaro às vacinas iam “contra o que preconiza a ciência”. “Destarte a amizade que tenho pelo presidente, a conduta do presidente difere da minha.”

Antes de ser efetivado na Anvisa, o militar servia ao Planalto como uma espécie de contraponto ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e chegou a minimizar a gravidade da pandemia no Congresso.

“É importante citar todo o esforço que há para que não se dissemine o pânico”, disse aos parlamentares. Poucos dias depois, infectados e mortos por covid-19 no País aumentaram exponencialmente.

Sete meses depois, o Senado confirmou a indicação do militar para comandar a agência reguladora. Sem a possibilidade de ser demitido, por exercer mandato de cinco anos, Barra Torres passou a se distanciar do presidente e a defender a “autonomia da agência”.

Divergências

A partir de janeiro de 2021, as divergências ficaram mais claras A Anvisa deu aval para o uso da Coronavac, trazida ao País por iniciativa do governador de São Paulo, João Doria, rival de Bolsonaro.

Ao longo de 2021, o afastamento se concretizaria, aprofundado pela CPI. Em depoimento em maio, Barra Torres confirmou que houve uma tentativa política no Planalto para inserir a recomendação da cloroquina, sem eficácia, no tratamento da covid-19. E disse ter se posicionado contra.

Em outubro, Barra Torres rebateu a declaração falsa de Bolsonaro de que os imunizantes poderiam causar aids. E, em novembro, a Anvisa recomendou a cobrança de vacinação contra para ingresso de viajantes no País, contrariando Bolsonaro.

O rompimento final veio em dezembro. Em live, após a Anvisa aprovar a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos com a Pfizer, Bolsonaro instigou a exposição pública dos nomes dos técnicos envolvidos na decisão, o que gerou uma onda de ameaças aos diretores da agência. Barra Torres cobrou proteção policial e investigação. Bolsonaro disse que o diálogo estava encerrado. “Impossível conversar mais com o presidente da Anvisa.”

Procurada pelo Estadão, o Planalto não se pronunciou sobre a carta de Barra Torres, que não quis dar entrevista. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.