Morre aos 78 anos o escritor Sérgio Sant’Anna, vítima da covid-19

No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual que a literatura brasileira já teve notícia. Sérgio Sant’Anna morreu neste domingo, 10, vítima da covid-19. Sérgio Sant’Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria […]

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No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual que a literatura brasileira já teve notícia. Sérgio Sant’Anna morreu neste domingo, 10, vítima da covid-19. Sérgio Sant’Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria com um profundo interesse nas letras, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade. Essa visão influenciou mais de uma geração de escritores. Ele estava internado no Hospital Quinta D’Or, na zona norte do Rio, há uma semana.

Acostumado a distinções e reconhecimentos críticos, Sant’Anna continuou criando até o fim da vida, nos seus textos ficcionais, uma ambientação sensual para reflexões profundas que encontra poucos paralelos na literatura brasileira contemporânea. A proliferação de sua escrita contrasta com a construção da frase em seus textos, pensada como elemento estético-político, sempre tratada com elegância mesmo na ativa participação do escritor nas redes sociais.

Profundamente interessada pelo mundo ao seu redor, bem como a histórias do passado, e situada numa geografia tipicamente brasileira, carioca, a obra de Sant’Anna se volta para os conflitos íntimos dos seus variados personagens, colocando-os em confronto com a sociedade, tornando-se assim universais. Incansável, o escritor sempre buscou novos caminhos, mantendo em sua obra a coerência de um universo particular.

Sua tendência à experimentação formal é facilmente detectada no trânsito que sua obra mantinha com diversos gêneros, embora ele mesmo reconhecesse no conto o seu métier principal. “Me dou melhor com formas mais breves”, disse o escritor num encontro com leitores em Curitiba, há 10 anos. “Tenho muito mais tendência à narrativa curta do que ao romance. No romance, existe uma vocação. Tem gente que é romancista quase que nato. Tem gente que cria, que puxa aqueles fios da meada, por exemplo, a saga de uma família inteira, que encontra personagens secundários desenvolvidos. Comigo é o contrário, tenho uma tendência à concentração. Inclusive, tem uma coisa que eu sei explicar: o conto me permite experimentar mais. Eu gosto de ser lido – não é experimentação no sentido de tornar o livro absolutamente ilegível. É experimentação no sentido de procurar formas novas para cada livro.”

Mais recentemente, porém, ele demonstrava inquietação com a definição “conto”, preferindo em seu lugar a palavra “narrativas”.

Seus narradores, seguindo a coerência, têm plena consciência da própria condição de narrar, estabelecendo assim desde o primeiro plano narrativo uma metalinguagem que coloca em jogo sempre as representações da realidade, e não a realidade em si, atribuindo sofisticação à sua literatura.

Um dos exemplos dessa constatação é Um Crime Delicado (1997, vencedor do Jabuti de 98), romance em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como peça, trabalhado como crítica. Antonio Martins é um crítico que se envolve em um processo criminal após o seu envolvimento com Ines, uma mulher manca que causa nele uma profunda impressão. O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos. Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant’Anna cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado, gerando um curto circuito de alta voltagem narrativa.

Rio

Torcedor dedicado do Fluminense, o escritor também foi um dos responsáveis por inserir o futebol no contexto da literatura brasileira, em diversos contos, como Páginas Sem Glória, do livro de mesmo nome em 2012.

O escritor gostava de citar, em textos ficcionais e nas entrevistas, sua “experiência mineira”, quando ele viveu 12 anos em Belo Horizonte, mas o Rio de Janeiro acabou sendo sua principal morada, real e literária. Em um dos contos do seu último livro publicado em vida, Anjo Noturno (2017), o narrador lê Proust ao som dos “tiros de grosso calibre”.

“O Rio é mesmo o meu cenário, pois nasci e vivi aqui”, disse ele ao Estado na ocasião do lançamento do livro. “Mas também morei em Belo Horizonte por 12 anos, estada que, pela convivência com muitos artistas, foi fundamental na minha formação literária. E, por incrível que possa parecer, durante um certo tempo eu ouvia, constantemente, os tiroteios, com armas de alto calibre, vindo dos morros mais próximos. E houve momentos, sim, que me vi lendo alta literatura, ou escrevendo, ao som desses tiroteios. Mas é também porque as balas não chegam a atingir o prédio onde moro. E no conto mencionado há um episódio em que um bandido adolescente faz amor com sua namorada numa situação de alto risco. É imperdoável que o País não tenha criado perspectivas para as crianças e adolescentes das comunidades mais pobres.”

Suas obras foram traduzidas para alemão, italiano, francês, espanhol e tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia “que todo mundo já ganhou”), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro.

Início

Sant’Anna começou na literatura em 1967, realizando enfim o sonho de escrever. Inscreveu um conto num concurso para alunos da Faculdade de Direito da UFMG, onde estudava, e ficou em segundo lugar, recebendo elogios da comissão julgadora, liderada por Murilo Rubião (o primeiro lugar ficou com Humberto Werneck, seu amigo e primo em segundo grau). Ele passou a publicar na revista Estória, editada por Luiz Gonzaga Vieira, e também no Suplemento Literário de Minas Gerais, conduzido pelo próprio Rubião.

Começou em livro com os contos de Sobrevivente, em 1969 (nascido no contexto da ditadura militar, ferida histórica que seus livros nunca perderam de vista, sem, porém, nenhuma derivação moralizante), que ele mais tarde renegou. Ao longo das décadas, dezenas de títulos aclamados ajudaram a consolidar sua obra no panteão da literatura brasileira, como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1983), A Tragédia Brasileira (1984), O Monstro (1994), Voo da Madrugada (2003), O Livro de Praga (2011) e Anjo Noturno (2017), seu último livro publicado até agora.

Quando questionado qual era o seu livro preferido (no podcast da Companhia das Letras, a editora de seus livros, que comemorou os seus 50 anos na literatura, em 2019), Sérgio Sant’Anna respondeu sem pensar muito: era A Tragédia Brasileira (1987). “Eu contei uma história muito cheia de acidentes de percurso, há várias linguagens mas ao mesmo tempo é uma história que me seduz muito, a história de uma mocinha atropelada no Rio de Janeiro. Por várias circunstâncias que estão no texto, ela é considerada uma virgem santa. A partir daí pego toda uma religiosidade, o cemitério… Ela morre, mas fica com o corpo tão intacto que vira uma morta muito bonita. Por uma estranha coincidência, escrevi esse livro ao mesmo tempo em que o Amazona, um livro de ação, passado num Brasil moderno, a Dionísia é uma amazona que vai ascendendo ao poder. Por uma razão muito simples: eu cansava de um e pegava o outro.”

Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1941, e foi na biblioteca da casa dos pais onde adquiriu o gosto pela leitura, driblando a severidade da mãe em bloquear o acesso a títulos supostamente não adequados à sua idade (ele falava com humor sobre o Index católico depositado em uma das estantes da casa). Ele citava Monteiro Lobato como primeiro interesse. Quando tinha 12 anos, mudou-se para a família para a Inglaterra, onde aprendeu a ler em inglês, língua em que leu autores beat ainda na adolescência; Franz Kafka e Machado de Assis também sempre estavam no seu imaginário de escritor.

Quando volta ao Brasil, alguns anos depois se muda para Belo Horizonte, onde cursa a faculdade de Direito da UFMG, e em seguida volta para a Europa para concluir sua formação. Passa o 1968 em Praga, onde testemunha as revoluções sociais, e entre idas e vindas volta a viver no Rio de Janeiro em 1977, quando se torna professor da Escola de Comunicação da UFRJ, onde permanece até 1990. Antes disso, também trabalhou na Petrobras e na Justiça do Trabalho. Depois, se dedica exclusivamente à literatura, contribuindo para os principais jornais do País (inclusive o Estadão).

Além das influências literárias, Sant’Anna sempre colocou em sua obra elementos de artes plásticas e do teatro, presença que ele justificava como provocadora dos sentidos sem a tentação da imitação que os escritores provocavam. Quadros frequentemente se tornavam o ponto de partida de textos, seja pelo tema, seja pelo ambiente. Um de seus ídolos era Marcel Duchamp, e mais recentemente ele adorou a exposição do artista chinês Li Zhang Yang, no CCBB do Rio.

Velhice

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 2011, ele se indignava, bem humorado, de estar chegando aos 70. “Acho inacreditável. Acho um absurdo. Ninguém acha que vai chegar a uma idade dessas. Você sabe disso. Quando a gente tem 15 anos, não acha que vai chegar aos 30, acha que 30 é velho pra burro. Isso me chateia.”

Em 2017, lançando aquele que foi seu último livro publicado em vida (Anjo Noturno), Sant’Anna refletia sobre a própria vida em narrativas com fortes tintas autobiográficas, incluindo ali uma reconstituição impressionante do golpe militar de 1964. Na época, ele era sindicalista e trabalhava na Petrobras, de onde foi prontamente demitido pela ditadura.

“(Alguns dos textos) são mesmo totalmente autobiográficos, mas com um tratamento literário. Estou com 75 anos e andei sentindo um grande impulso de mergulhar no meu passado, de certa forma tornando este passado uma nova realidade. É um privilégio, sendo um escritor, poder fazer isso. Gostei também de tirar do baú o golpe militar, que me pegou em pleno ativismo político de esquerda. Felizmente, não fui preso ou torturado, como vários de meus amigos, o que me deixa entristecido até hoje. Mas fui processado num inquérito policial-militar e demitido de meu emprego. Porém, acho a situação política brasileira, apesar de tenebrosa (em 2017), com a corrupção instalada nos mais alto escalões, nem de longe mostra a violência da ditadura militar. Mas estão abusando da paciência do povo; só espero que a verdadeira direita não venha a lucrar com isso”, disse na ocasião, prevendo um futuro que mesmo os analistas políticos mais sérios ignoravam.

Política

Em 2018, como um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, lamentou o fato de as pessoas estarem na rua pedindo a volta da ditadura militar. “Fico chateado com gente pedindo a volta da ditadura. A maior parte das pessoas que estão aí pedindo não viveram aquilo. Foi barra muito pesada. O que se vive no Brasil hoje perto daquilo não é nada. Embora haja muita coisa condenável, naquela época era uma impotência total. Os jornais eram censurados. Quem advoga ditadura, se for com honestidade, está cometendo um tremendo equívoco”, disse o autor, para palmas do público, na ocasião.

Mais recentemente, Sérgio Sant’Anna publicava diariamente na sua página no Facebook opiniões incisivas sobre o estado político do Brasil, lamentava a perda de amigos e colegas, como Rubem Fonseca, mas também pedia aos amigos contatos nos jornais, que usou para publicar dois textos inéditos em abril e maio, um na Folha de S. Paulo e um na revista Época. Costumava se referir ao presidente Jair Bolsonaro como “a Besta”, e sempre ressaltava que era necessário manter o comando do País na mão dos civis.

“Meus queridos e minhas queridas, não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir se não escrevendo”, disse ele no dia 23 de abril. A peste levou Sérgio Sant’Anna, mas a peste não pode levar de quem ficou as suas palavras, eternas.

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lula