Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou liminar para derrubar dois habeas corpus coletivos expedidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para autorizar prisão domiciliar a detentos que cumprem pena em regime aberto e semiaberto em Uberlândia, em Minas Gerais, e conceder regime aberto a condenados por tráfico privilegiado no Estado de São Paulo na pandemia.

A decisão contraria a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que acionou o STF alegando ausência de previsão constitucional para a modalidade de habeas corpus coletivo e acusando dificuldade para cumprimento das ordens pelas Varas de Execução Penal.

“Os associados da Conamp integram o Ministério Público brasileiro e, por isso, são os efetivos titulares das ações penais, que estão e estarão sendo afetadas pelo entendimento jurisprudencial aqui impugnado”, argumenta a associação.

No entanto, na avaliação do ministro, desde o julgamento da Segunda Turma que, em fevereiro de 2018, concedeu a prisão domiciliar a grávidas e mães de menores de até 12 anos, o tribunal mudou entendimento e passou a admitir a modalidade de recurso. Depois disso, os ministros usaram o mesmo entendimento em habeas corpus coletivos para determinar a reavaliação de medidas socioeducativas em unidades de internação e estenderam a concessão da domiciliar a todos os presos provisórios que têm sob sua única responsabilidade a tutela de pessoas com deficiência e crianças.

“Houve a superação da jurisprudência anterior, com a consolidação do entendimento sobre o cabimento de habeas corpus coletivo”, registrou Mendes.

O ministro também rechaçou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), modalidade judicial escolhida pelo Conamp para tentar derrubar as decisões do STJ, como caminho adequado para contestar os habeas corpus.

“A transcrição de ementas de não conhecimento de habeas corpus coletivos por vícios processuais pontuais, como a supressão de instância ou não adequação dos casos concretos aos precedentes firmados, não são suficientes para fins de demonstração da relevante controvérsia judicial”, observou. “Nesse ponto, o acolhimento da tese exposta à inicial significaria que qualquer inovação jurisprudencial poderia ser submetida à análise do STF pela via da ADPF, sob a alegação de violação à legalidade, à separação dos poderes, ao devido processo legal ou à coisa julgada, o que não deve ser admitido, sob pena de se transformar essa ação em verdadeiro sucedâneo recursal direcionado ao Supremo Tribunal Federal”, acrescentou.

Gilmar Mendes destacou ainda que o Ministério Público é uma instituição voltada à proteção da ordem jurídica e dos direitos fundamentais, e não um ‘órgão exclusivamente voltado para a acusação e obtenção da condenação do réu'. Para o ministro, a tese do Conamp é baseada na ‘controvertida e injuriosa premissa de que a defesa das prerrogativas dos membros do MP confunde-se com o interesse processual da acusação'. “Como se a ordem concessiva dos Habeas Corpus pudesse de forma direta violar o interesse coletivo da categoria”, rebateu.

Para especialistas em Direito Penal ouvidos pelo Estadão, a decisão vai ao encontro dos princípios constitucionais que deram origem ao Ministério Público.

“Embora na ação penal o MP assuma a função de acusador, ele não deve desempenhar tal função a qualquer custo, em qualquer circunstância. Cumpre ao MP, antes de tudo, o papel de atuar para ver atendidos, nos casos concretos, os direitos e garantias fundamentais e a justiça, e de zelar por essas garantias. Portanto, é irretocável a decisão do ministro e é essencial que se faça uma reflexão mais profunda sobre essa questão essencial”, analisa Conrado Gontijo, advogado criminalista, doutor em Direito Penal e Econômico pela USP.

O movimento do Conamp, no entanto, corrobora estudo estudo inédito sobre a atuação do MP divulgado pela revista Consultor Jurídico (Conjur). A publicação diz que o órgão segue linhas jurídicas opostas em matérias Penal e Civil. Quando no papel de acusador, o Ministério Público é ‘claramente legalista', diz o levantamento, com tendências mais conservadoras e defesa da relativização de direitos e garantias constitucionais quando acredita que a sociedade deve ser beneficiada em detrimento do indivíduo. Já o ‘MP Cidadão', aquele que atua em defesa dos direitos constitucionais na área cível, tem tendências mais garantistas.

“O MP não é órgão de acusação, mas sim uma instituição legitimada a propor acusações nas ações penais públicas. Ou seja, esta sutil, mas importantíssima, distinção de funções é essencial para deixar claro que o representante do Ministério Público, também quando atuante em campo penal, deve buscar sempre a defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, defende Bruno Borragine, advogado criminalista e sócio do Bialski Advogados.

Na avaliação de Bruno Salles, advogado criminalista e sócio do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, a Constituição de 1988 ‘conferiu poderes extremamente alargados para o Ministério Público'.

“Ao contrário de outros países em que há uma divisão entre o órgão acusador (a ‘fiscalía' de países latinos) e o órgão de assessoramento (o próprio Ministério Público), no Brasil, concentrou-se todas as funções em um órgão só. O Ministério Público, assim, tem um desenho institucional que, além de competências em matérias difusas – como , urbanismo, educação, saúde e cidadania -, reúne a titularidade da ação penal, ou seja, a prerrogativa da acusação criminal, e também o papel de custus legis, o fiscal da lei. Assim, enquanto perdurar essa que faz do nosso Ministério Público uma instituição sui generis, ele tem, sim, o dever de resguardar os direitos dos acusados, inclusive atuando na persecução penal para produção de provas absolutórias”, opina.

O advogado Daniel Gerber, criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, considera que o perfil ‘híbrido' do MP ‘muitas vezes atrapalha a própria defesa e confunde os procuradores'.

“Não obstante a posição constitucional do MP ser a de fiscal da lei e, consequentemente, ter a obrigação de defender o réu diante de inconsistências legais, exigir de uma pessoa física que em processos penais acuse e defenda ao mesmo tempo é não apenas inviável como também improdutivo e falacioso, gerando ao órgão acusador uma falsa impressão de imparcialidade que acaba por prejudicar a defesa. Dessa forma, apesar da boa intenção constitucional, o MP deve ser visto como parte acusatória no processo penal, longe de ter para si a aura de fiscal da lei que lhe acompanha nas demais áreas do Direito. É acusador, comprometido com a condenação, motivo pelo qual em nada ultrapassa ou se diferencia da parcialidade e compromisso que caracteriza o defensor técnico”, opina.

Cecilia Mello, ex-desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3.a Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) e titular do Cecilia Mello Advogados, acredita que a decisão de Gilmar Mendes reforça a necessidade de uma constante reflexão sobre as funções constitucionais e essenciais à Justiça atribuídas ao Ministério Público. “Partindo-se da premissa de competir a essa instituição a defesa e proteção dos direitos fundamentais mesmo no âmbito da sua atuação como parte nos processos penais, a lealdade processual e o respeito à verdade dos fatos investigados, parecem-me deveres intrínsecos ao exercício dessa competência”, diz.

No entendimento do advogado Diego Henrique, criminalista associado ao Damiani Sociedade de Advogados, a decisão do ministro do STF é ‘cirúrgica' e reforça a importância de rechaçar tentativas reducionistas de transformar o Ministério Público em mero acusador.

“A tentativa de limitar a atuação do órgão à acusação é perpetrada diuturnamente por parte de seus membros, que esquecem seu dever constitucional de defesa dos interesses da sociedade, direcionando sua atuação à busca implacável por condenações a qualquer preço. Na verdade, atuar em defesa da sociedade no Estado Democrático de Direito significa trabalhar em favor de um ideal de justiça somente atingível mediante a observância estrita das normas previstas no ordenamento jurídico”, afirma.

Na mesma linha, Claudio Bidino, sócio do Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford, recorda o papel principal do MP. “O Ministério Público não pode deixar que os inúmeros poderes investigativos e acusatórios adquiridos nos últimos anos se sobreponham à principal função que lhe foi atribuída pela Constituição Federal: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, afirma.

Para Alexandre Fidalgo, sócio do Fidalgo Advogados, a decisão deve aliviar a pressão sobre procuradores e promotores de ‘denunciar em qualquer situação'.

“É uma pena que o STF tenha que reafirmar o óbvio. Quem trabalha com a Justiça criminal sabe que o Ministério Público atua, com raras exceções, como verdadeira parte censora nos processos, muitas vezes alheia a garantias e direitos fundamentais dos réus, como se o objetivo de toda instrução processual fosse a condenação, a todo custo”, afirma o sócio Alexandre Fidalgo. “O Ministério Público é o defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis, serve de farol para os membros da instituição, que devem resguardar direitos constitucionais assegurados a todo indivíduo, inclusive o da ampla defesa e contraditório, recorrentemente ofendido pelo poder público”.

Já Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e sócio do Almino Afonso & Lisboa Advogados Associados, entende que a decisão é um olhar externo saudável para dentro do MP, hoje sob a mira da sociedade e da imprensa.

“O sistema de Justiça é sustentado no tripé ‘juiz, Ministério Público e advogados'. Não necessariamente nesta ordem, claro. Porém, incumbe a esses atores velar pelo cumprimento das leis e promover as garantias dos direitos fundamentais, assegurados pela Constituição da República. Imaginar que órgãos da Justiça possam se submeter a projetos não que visem projeção pessoal ou corporativa através do aparelhamento do Estado é, no mínimo, subestimar a inteligência média do cidadão brasileiro. Por isso, há que se prestigiar o Ministério Público, para que não se estabeleça nas instituições uma terra sem lei, em que autoridades possam ser imunes ao sistema de controle social, tão natural numa democracia. Portanto, no Estado Democrático a Defesa de direitos não é monopólio dos advogados, mas de todos que estão ali a representar por delegação os interesses da sociedade”, enfatiza.