Constelação familiar: técnica terapêutica é usada na Justiça para propagar cultura de paz
Método se baseia na identificação de traumas familiares para evitar a repetição de comportamentos
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Método se baseia na identificação de traumas familiares para evitar a repetição de comportamentos
Em um salão, diante de 120 espectadores, o mediador convida uma das pessoas presentes a contar sua história.
É uma mulher que diz ter uma relação tumultuada com a filha de 35 anos, viciada em crack e vítima de transtornos mentais. Ela aguarda uma decisão judicial na ação em que pede a internação compulsória da filha, que recusa tratamento e ameaçou agredir pessoas na rua.
O mediador então convoca voluntários para o palco. Cada um deles simbolizaria integrantes da família e partes envolvidas no conflito: a mãe, a filha, o crack, o pai da mulher, seu ex-marido – reproduzindo, assim, a dinâmica familiar.
“O (voluntário que simbolizava o) crack imediatamente se colocou entre (representantes de) mãe e filha, impedindo sua aproximação”, conta o mediador. “A mãe, então, começou a gritar: ‘Não, você não vai tocar nela!’.”
Para o mediador, “estava claro que havia algum excluído na família. O crack representa alguém excluído, alguém a quem aquela pessoa não teve acesso”.
A sessão se estende por cerca de uma hora. Em determinado momento, a mulher relembra sua história antes de a filha nascer: ela havia sido obrigada a se casar por ordem do próprio pai.
Eis então a raiz do conflito, conclui o mediador: a relação entre a mulher e seu pai.
“Falei que o crack representava, na verdade, um homem”, diz ele. “Expliquei que, apesar de ter sido muito difícil para a mãe ter sido obrigada a se casar, somente porque isso aconteceu a sua filha pôde vir ao mundo. Se ela amava a filha, teria que, a despeito de tudo, reconhecer e agradecer o que seu pai fez.”
A mulher, a seguir, olha para seu “pai” e, emocionada, agradece-o.
“Para quem estava assistindo, foi uma cena tocante”, relata o mediador – o juiz Sami Storch, do Tribunal de Justiça da Bahia, quem relata o caso acima, ocorrido em 2016 na cidade baiana de Valença.
A cena, que se assemelha a uma sessão de terapia, não se desenrolou em um consultório terapêutico, mas sim dentro de uma comarca judicial. É uma das experiências do Poder Judiciário para facilitar a resolução de conflitos, por meio da técnica chamada constelação familiar.
Traumas e conflitos
O método terapêutico tem como objetivo identificar traumas familiares que, segundo a teoria – não livre de polêmicas – desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger nos anos 1970, acabam perpetuando comportamentos destrutivos e conflitos na família – assim como no caso baiano descrito acima.
Fazendo a dramatização dos conflitos, a constelação busca trazer à tona questões pontuais mal resolvidas dentro da história familiar (mortes precoces, perdas e rupturas, por exemplo) que seriam capazes de influenciar comportamentos futuros – muitas vezes inconscientes – dos membros da família.
Ainda que as constelações não substituam (e tenham aplicações distintas de) outras formas de psicoterapia e mediação, juízes e psicólogos defensores da prática dizem que esses traumas costumam ser identificados em intervenções rápidas – de meia hora ou uma hora, em dramatizações coletivas ou sessões sigilosas individuais – e permitem às pessoas ver seus conflitos sob outra ótica, além de despertar empatia pelas outras partes da disputa.
Storch afirma que, alguns dias depois da constelação em Valença, ele soube pela assistente social do caso que mãe e filha haviam conversado “de forma carinhosa e tranquila, como há anos não acontecia”, e a filha pouco depois seria liberada da clínica onde fora internada por ordem judicial.
Storch realiza sessões mensais de constelação, atualmente na Comarca de Itabuna, para as quais convida pessoas envolvidas em dezenas das ações judiciais sob sua responsabilidade. A participação é facultativa. Em cada sessão, ele coloca em evidência dois ou três casos, explorando as dinâmicas familiares que podem estar por trás da disputa judicial.
“Isso aumenta consideravelmente as chances de acordo”, diz o juiz, que começou a adotar técnica há cerca de dez anos, por conta da própria frustração com ter de proferir decisões judiciais que nem sempre traziam harmonia para as partes interessadas.
“As decisões eram descumpridas e não traziam um desfecho positivo (aos envolvidos)”, conta Storch à BBC Brasil.
“Um único casal em processo de divórcio chegou a ter 25 ações tramitando na Justiça, entre pedido de pensão alimentícia, partilha de bens e denúncia de violência doméstica. Eles não se olhavam nos olhos havia muito tempo. Com a constelação familiar na audiência, conseguimos que eles identificassem as origens do conflito e entrassem em um acordo que pôs fim a boa parte dos processos.”
Para a juíza Vanessa Aufiero, cuja vara de família, em São Vicente (SP), usa a constelação desde 2016, com cerca de 50 famílias por mês, trata-se de um esforço de alguns tribunais “em serem não apenas aplicadores da lei, mas sim propagadores de uma cultura de paz”.
Índices de acordo
Não há dados nacionais sobre o uso dessa terapia na Justiça nem de seu impacto, mas levantamento de 2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificou que ela era usada em varas de ao menos 11 Estados brasileiros nos esforços de conciliação.
O método é respaldado por uma resolução do próprio CNJ, que recomenda “mecanismos de soluções de controvérsias” dentro do sistema judicial.
Em Goiás, o CNJ premiou em 2015 um projeto da comarca de Goiânia, que usou as constelações em mediações judiciais, com índice de solução de cerca de 94% em disputas familiares. O projeto será retomado agora em março.
Na maioria das vezes, a constelação é empregada em varas de Família e Infância e Juventude, em questões envolvendo violência doméstica, guarda de filhos, adoção, abandono e divórcio. Mas especialistas afirmam que é possível usá-la também em casos de disputas empresariais e processos criminais.
Durante um semestre em 2013, o juiz Storch aplicou questionários aos participantes de audiências de conciliação nas quais usou técnicas de constelação na Bahia. Em 100% delas houve acordo entre as partes, diz ele, e 59% das pessoas participantes afirmaram ter percebido mudança de comportamento familiar que melhorou o relacionamento entre as partes.
Agora, ele compila os dados de casos mais recentes para sua tese de doutorado.
“Não é algo mágico”, explica ele. “Depende das partes terem vontade de conciliar. Se houver a decisão de não fazer acordo, segue o processo judicial tradicional.”
‘Oxigenar o Judiciário’
Apesar da resolução do CNJ amparando a técnica, não há diretrizes específicas para sua aplicação – depende, portanto, de ela ser encampada por cada juiz ou vara judicial.
“Estamos tentando fazer com que se torne algo mais uniforme, para que o cidadão que chegue aqui saiba que ela existe e veja como é aplicada”, diz à BBC Brasil a juíza Claudia Spagnuolo, da 11ª Vara de Família na região de Santo Amaro, bairro na zona sul da capital paulista.
Ela encabeça um um projeto-piloto que pretende adotar, ainda neste ano, a constelação em casos judiciais na vara, como uma forma de “ajudar a oxigenar o Judiciário”.
“Os processos tradicionais trazem um custo emocional às famílias e um custo financeiro ao Estado. Se há entendimento, empoderamos as famílias a buscar soluções para seus conflitos (sem a necessidade de judicialização)”, diz ela.
“Não é necessariamente algo que dê resultado da noite para o dia – é um psicodrama, um teatro (das relações familiares), e as pessoas começam a se enxergar nos problemas. Começa a ‘cair a ficha’.”
Também na capital paulista, no Fórum de Santana (zona norte), a psicóloga judicial Nádia Xavier Rodrigues de Oliveira aplica voluntariamente a constelação em casos diversos. Em suas intervenções, identificou que uma briga entre sócios tinha origem nas frustrações de um deles com o próprio pai; que uma mãe que acusava o ex-marido de ter tido relações sexuais com a nova mulher diante da filha do casal na verdade havia projetado o que tinha acontecido em sua própria infância, com seu próprio pai.
São exemplos que mostram o quão delicadas podem ser as questões familiares que emergem nas intervenções, diz Oliveira.
“É preciso muito cuidado, muita delicadeza nas palavras”, diz ela.
Segundo a psicóloga, a constelação leva os participantes a acessar um “campo de informação” – uma espécie de inconsciente coletivo daquela família ou comunidade, que é o que permite aos voluntários agir e falar como se fossem membros da família constelada.
“Mas a constelação não tem nada a ver com misticismo ou espiritismo, é uma psicoterapia”, justifica Oliveira.
A técnica tem crescido também na prática clínica, mas, dada sua abordagem incomum e o relativamente baixo número de estudos de caso e testes clínicos – tanto no Brasil quanto em EUA e Europa -, ainda é vista com algum ceticismo por parte dos psicólogos.
“Como é uma abordagem relativamente nova e tem um caráter ligado à espiritualidade e a questões transgeneracionais (de difícil comprovação científica), existe uma certa resistência”, afirma Rosane Granzotto, conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP). “É uma abordagem que talvez mais adiante seja legitimada, mas ainda corre às margens.”
Além disso, defende Granzotto, é preciso que o método seja exercido por psicólogos capazes, justamente, de amparar as pessoas diante da descoberta de traumas que muitas vezes estavam guardados. Por isso, ela defende que comarcas judiciais só apliquem a técnica sob a orientação de psicólogos especializados, regidos pelo código de ética do CFP.
“Aplicar a técnica é fácil, o difícil é lidar com o que aparece. São experiências muito fortes, e (o interventor) tem de estar preparado para acolher e saber como intervir, o que é uma grande responsabilidade”, explica Granzotto.
No presídio, a figura paterna
Marcelo Pelizzoli viu emergirem algumas dessas experiências fortes nas constelações que acompanhou no Complexo do Curado (PE), maior penitenciária do Brasil, que abriga 7 mil presos em um espaço com capacidade máxima de 1,8 mil pessoas.
As sessões eram um “oásis dentro do inferno”, diz Pelizzoli, que é professor da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Justiça Restaurativa do Estado.
Nas sessões coletivas, realizadas em 2015 com 200 presos com “mais necessidade emocional”, selecionados por uma psicóloga, Pelizzoli abordava desde sofrimentos passados e a entrada na vida do crime até perspectivas futuras dos detentos.
Segundo ele, a figura paterna emergia como algo central. “Não é algo predeterminado, mas abandono e violência praticados pelo pai e crimes prévios na família muitas vezes levavam a uma predisposição desses homens para entrar no crime”, argumenta.
“Eles choravam muito (quando essas histórias familiares vinham à tona). Temos relatos escritos e orais de pessoas que se arrependeram (ao identificarem traumas), que começaram a acreditar na própria humanidade. Eles começam a se dar conta da dor e da ruptura que causaram.”
Por conta disso, Pelizzoli diz acreditar que a técnica pode ajudar na ressocialização de detentos, ao permitir que eles “reencontrem sua humanidade” e entendam as origens de seu comportamento violento.
“Um preso, por exemplo, que praticava infrações desde cedo tinha um ódio muito grande do pai. Quando ele se deu conta que esse ódio era, no fundo, a falta que ele sentia da figura paterna, e quando conseguiu perdoar o pai (por sua ausência), entendeu sua entrada no mundo do crime”, diz o professor.
De volta à Bahia, o juiz Storch também já usou a técnica em processos criminais, mas destaca que um eventual arrependimento não muda o fato de o processado ter de responder pelo crime.
“Em casos como roubo e homicídio, por exemplo, uma reconciliação não vai isentar o réu de sua pena”, explica. “Mas pode ajudá-lo a melhorar seu comportamento, reduzir sua agressividade e lidar com seus vícios. E, para a vítima, pode trazer algum conforto.”
Consultada pela BBC Brasil, a organização de Bert Hellinger, criador da metodologia, afirma não ter informações sobre outros países que utilizem a constelação familiar no Poder Judiciário. Há experiências esporádicas, como o de um mediador que aplicou a técnica em presos por crimes violentos nos EUA e, segundo Storch, de advogados e promotores que a utilizam em procedimentos de mediação e arbitragem
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