Hoje com 32 anos de idade, fundadora disse ter sido expulsa de casa aos 15
Adriana Liário, de 32 anos, carrega consigo as marcas da violência. Travesti, já foi estuprada duas vezes, agredida outras inúmeras e ainda julgada quando procurou apoio. O retrato de Adriana reflete a realidade vivenciada por travestis e transexuais em Mato Grosso.
Ainda sem entender sua sexualidade, foi expulsa da casa em Tangará da Serra (239 km a Noroeste de Cuiabá), onde morava com os tios, após eles perceberam um comportamento feminino, aos 15 anos.
Ela foi parar em Várzea Grande, morando nas ruas da região do Zero KM. “Fui abandonada, não tive outra opções. Tive que morar na rua e foi no Zero que vi pela primeira vez uma travesti. Foi aí que comecei a entender meu corpo, minha sexualidade”.
Como era menor de idade, não podia morar com as cafetinas. Teve que ficar na rua por cerca de três anos, até que completou 18 anos e foi “acolhida” em um dos bordeis da região. Começou a se prostituir, colocou silicone e adotou o nome social.
Aos 19, precisou tomar uma injeção que acabou resultando na amputação do seu braço direito. “Foi um período difícil. Fiquei internada e sem chão, não podia voltar para casa e também não podia me prostituir. Foi até que as outras travestis me acolheram e cuidaram de mim”.
Hoje Adriana simboliza a luta das travestis e transexuais. Presidente do Grupo de Apoio a Travestis e Transexuais de Rondonópolis (GATTRS), prometeu que, após ser acolhida, seria sua vez de cuidar delas.
No final do mês passado, Adriana esteve ao lado da comunidade LGBT na 14º Parada de Diversidade Sexual de Cuiabá. Durante todo o percurso ela segurou um cartaz com fotos que mostram agressão contra travestis e transexuais.
“São tantos crimes e que alguns deles nunca foram desvendados. Hoje, Mato Grosso é o segundo Estado que mais mata homossexuais no País e ninguém faz nada. Precisamos de ajuda”.
Vulnerabilidade
Não só presidindo o GATTRS, mas também atuando como membro do Conselho Municipal de Saúde e em outras frentes que ajudam a população trans, ela recorda que em todos os casos que vem trabalhando, a história se repete.
“Em todos os casos elas são expulsas de casa e acabam ficando sem oportunidade, sem apoio. A prostituição é a única saída naquele momento”, conta.
No entanto, ela ressalta que se tivessem a oportunidade de sair das ruas, todas abraçariam.
“Viver nas ruas como profissionais do sexo é muito arriscado. Um levantamento de nível nacional aponta que hoje, a expectativa de vida de uma travesti é de 30 anos. Se ela não morre por crime de transfobia, acaba morrendo por alguma doença que contraiu na rua”, ressalta.
“Em agosto, registramos 16 crimes contra travestis e transexuais na cidade. É um número alto. Em 2013, por exemplo, foram 50 boletins de ocorrência. Todos os dias acontece algo e não temos respaldo nenhum da segurança pública”.
Só nos últimos anos, foram mais de 180 boletins de ocorrências confeccionados relatando violência de todos os gêneros contra travestis e transexuais.
“Quando a gente procura a polícia para denunciar uma agressão ou algo do tipo, o policial que está dentro da delegacia não é preparado para nos atender. Sempre tem uma piadinha indireta rolando, uma troca de olhares. Não nos dão credibilidade”, lamentou.
Visão marginalizada
Já Adriana Sales tem 40 anos. Ela foi expulsa de casa aos 13, quando se assumiu homossexual. “Foi na escola que tive um acolhimento. Tinha uma boa relação com meus professores, com as merendeiras e encontrei naquele ambiente uma forma de me ancorar”.
A explicação de Adriana contextualizou sua vida profissional. Ela é formada em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e tem título de mestre em Educação. Hoje faz doutorado em Psicologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Uso meu conhecimento para rebater o preconceito. Toda vez que me encontro em uma situação de violência e preconceito, rebato com a teoria”, disse ela.
A professora lembra que cresceu de forma normal e sem nenhuma dificuldade, já que, para ela, são as outras pessoas que a tratam com o diferencial.
“Quanto mais acesso nós temos, mais a gente sofre. Isso acontece porque as pessoas não estão preparadas para ver uma travesti tendo acesso com uma profissão, qualificação e no mercado de trabalho”.
Segundo Adriana, a sociedade ainda vê a travesti com um olhar marginalizado, fazendo associação à prostituição, por exemplo.
“Eu cheguei a me prostituir, mas foi um curto período e por vontade própria. Sofri uma única violência, quando passaram em um carro e me acertaram com um extintor de incêndio na cabeça”, contou.
Para a professora, sua experiência com a prostituição foi e é uma exceção. “Não é a realidade que muitas vivem, sabemos disso. Tenho amigas que perderam a vida e outras que já foram vítimas de inúmeras agressões”.
A saída para isso tudo seria a consolidação de políticas públicas aos travestis e transexuais. No entanto, não é isso que vem acontecendo.
“Estávamos caminhando pelo avanço no último governo, porém, o atual está caminhando para trás. Não somos respeitadas em órgãos públicos, como na área da saúde, da segurança, nem mesmo nosso direito ao nome social é respeitado”.
Caminho contrário
A professora acredita que é importante que travestis e transexuais entendam que a prostituição não é a única saída. Mas, para que isso aconteça, é preciso o reforço de políticas públicas.
“No entanto, como é que elas podem voltar para a escola, se a escola não está preparada para recebe-las?”
Para isso, há um movimento em nível nacional – que ainda não foi implementado em Mato Grosso – onde travestis e transexuais estão se organizando para estudar.
“Exemplo disso é o programa Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, que dá oportunidades aos travestis e transexuais em meio à retomada dos estudos. No Rio de Janeiro tem o ‘Prepara, Nem!’, curso gratuito visando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que ganhou mais destaque após uma travesti ser aprovada em Medicina”.
Em Mato Grosso, segundo Adriana, falta mobilização e apoiadores.
“Falta ainda a articulação, não é só diálogo com a população, com os políticos e com o poder público. O que precisa mesmo é de disposição para que mudanças e programas sejam implementados de fato”, finalizou.