Na avaliação, a pessoa pode até não saber que está sendo racista e se achando engraçada

A irreverência do carnaval em muitos casos pode trazer consigo preconceitos há muito enraizados na cultura brasileira. Fantasias como nêga maluca ou mesmo homens travestidos de mulheres acabam por reforçar o racismo e a homofobia, explica a integrante do coletivo de mulheres negras Pretas Candangas, Daniela Luciana. Segundo ela, isso é bastante comum nos blocos de rua. Ontem, no entanto, acabou ocorrendo também durante o desfile da Mangueira, no Rio de Janeiro, quando, em alguns momentos, integrantes da comissão de frente desfilaram com vestimentas que lembram personagens conhecidas como nêga maluca.

“Sei que os carnavalescos têm autonomia para fazer isso e que, muitas vezes, a comunidade não tem poder de decisão para evitar coisas desse tipo. Mas, nesse caso, coreógrafo e diretoria acabaram por cometer esse erro [reforçar preconceitos por meio de estereótipos], o que ofuscou o brilho da escola”, disse a integrante do Pretas Candangas à Agência Brasil. “Mesmo que digam que não se trata da fantasia de nêga maluca, eles usaram de elementos que estereotipam o corpo da mulher negra, com seios e nádegas ampliadas. Não é homenagem. Não gostei”, acrescentou.

A crítica de Daniela se estende também às pessoas que usam a fantasia nos blocos de rua. “Em Belo Horizonte, por exemplo, há um bloco onde todos integrantes saem de nêga maluca. Nós, negros, somos um quarto da população e repudiamos ser representados como malucos. Cabelo e pele de negro não é fantasia, até porque temos de usá-los o ano inteiro. Não é objeto de riso, mas a identidade de alguém. E muitas pessoas morrem pelo simples fato de serem negras”, disse a integrante do coletivo Pretas Candangas.

Na avaliação dela, a pessoa pode até não saber que está sendo racista e se achando engraçada. “Mas quem diz se é racismo é o negro ou a negra. E, para mim, não existe exceção. É, sim, racismo”, completou, citando também, como exemplo, marchinhas como O Teu Cabelo não Nega, de Lamartine Babo.

Outro tipo de fantasia que incomoda a integrante do Pretas Candangas está relacionada à homofobia. “Sou totalmente contra que homofóbicos se vistam de mulheres. Quando eles se vestem de mulher, estão ferindo quem é transexual. Às vezes, é uma pessoa que fala mal e discrimina o o ano inteiro. Mas no carnaval se veste como um, por considerar tal fantasia como algo ridículo”, argumentou.

A opinião de Daniela é corroborada pelo diretor da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) na Região Centro-Oeste, Evaldo Amorim. “Diante da cultura machista da sociedade brasileira, os preconceitos se apresentam na tendência de buscar risos e chacotas a partir das formas e vestes femininas. Assim, ridicularizam homossexuais, travestis, transexuais e a própria mulher, por colocar neles uma imagem ridícula, inferior, marginalizada e estereotipada. No caso dos homossexuais, apresentando-os como peças de humor e do ridículo, a exemplo do que é visto em programas de humor na televisão”, disse ele àAgência Brasil.

Para Amorim, é preciso que o carnaval tenha um limite: “É o respeito. A cultura anterior não pode ser mantida no sentido de ridicularizar as pessoas”, disse o diretor da ABGLT. “Acredito que a maioria dos homofóbicos não participariam dessa brincadeira. Mas há, sim, casos que podem ser identificados pelo comportamento. Eles usam dessas fantasias para ridicularizar, inferiorizar o outro.”

O que falta, na avaliação de Amorim e de Daniela, são campanhas educativas que mostrem às pessoas que, em atitudes desse tipo, elas podem estar reproduzindo diversas formas de preconceito. No entanto, o que se veicula na mídia, muitas vezes, é o oposto. “Vimos campanhas de uma cerveja dizendo às pessoas que, durante o carnaval, guardem o [termo] ‘não’ em casa. Isso é machismo, porque estimula homens a forçarem beijo nas mulheres. Acontece muito em Salvador. Lá os homens têm o hábito não só de roubar beijos, mas de passar a mão nas mulheres”, argumenta Daniela.

O fisioterapeuta Terge Vasconcelos se fantasiou de nêga maluca no último sábado, quando foi entrevistado pela Agência Brasil. Ele discorda da opinião da representante do Pretas Candangas. “Trata-se apenas de uma fantasia para brincar o carnaval. Nunca fui taxado de racista por ninguém em toda a minha vida. Pulo carnaval cercado de pessoas de todas as raças, que fazem parte do meu círculo de amizade”, disse. Nesta segunda-feira de carnaval, Terge se fantasiou de “Barbicha”, uma sereia com barba no rosto, dentro de uma caixa de boneca no estilo da Barbie. “Cada dia brinco com uma situação diferente. É para isso que existe o carnaval”, acrescentou.

Na opinião da integrante do coletivo de mulheres negras, a legislação brasileira, que proíbe, por exemplo, o uso de símbolos nazistas, deveria fazer o mesmo em situações como fantasias que incitem racismo ou homofobia. “Esses preconceitos estão no cotidiano do brasileiro, não apenas no carnaval. Portanto, no carnaval não seria diferente. Mesmo se usada como forma de ironia, com o objetivo de chamar a atenção para o racismo, é melhor não usar essas fantasias porque corre o risco de surtir o efeito oposto, tornando-se ofensivo a alguém. Se tem o risco de ser ofensivo, é melhor não usar”, destaca Daniela.