Consultório na Rua leva assistência médica a quem mora nas vias públicas
As atividades são itinerantes
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As atividades são itinerantes
Uma separação dolorosa, seguida do abuso de álcool, acabou levando Crélio Leite, 55 anos, a viver nas ruas do Rio de Janeiro por cerca de dez anos. Pedreiro de profissão, nunca deixou de trabalhar, fazendo biscates e trabalhando em obras, mas o dinheiro não dava para pagar aluguel. Há três anos, a tuberculose e o vício o levaram ao fundo do poço.
“Estava quase morto, dava para tocar violão com minhas costelas”, lembra ele. Foi nessa época que Crélio recebeu assistência de uma das equipes do programa Consultório na Rua, criado em 2011 pelo Ministério da Saúde. O programa visa a ampliar o acesso da população em situação de rua ao Sistema Único de Saúde (SUS). Em todo o Brasil, há 148 equipes de consultórios na rua, localizadas em 83 municípios, com um crescimento de 85% em relação a 2012, quando havia 80 equipes.
As atividades são itinerantes e, quando necessário, utilizam as instalações das Unidades Básicas de Saúde. Crélio, que está há nove meses sem beber e há dez vivendo em um abrigo da prefeitura, já não é mais atendido na rua e vai voluntariamente à Clínica da Família Victor Valla, em Manguinhos, zona norte do Rio, onde recebe atendimento de uma das sete equipes que atuam na capital fluminense.
“Aqui, eles me deram tudo. São uns anjos. Me encaminharam para a fisioterapia, ortopedia, dentista. Hoje, sou um homem feliz. Consegui a aposentadoria, porque eles me ajudaram. Tudo o que tenho agradeço a eles”, conta Crélio.
Com quase dois mil cadastrados, a equipe tem uma média de 40 atendimentos por dia e atua em uma região extremamente carente, que engloba os bairros de Manguinhos, Bonsucesso, Penha, Ilha do Governador, Maré e Vigário Geral, todos na zona norte.
Para a médica da equipe, Valeska Antunes, a invisibilidade e o preconceito são os maiores obstáculos dessas pessoas para acessarem serviços e direitos.
“A gente olha, mas não enxerga. Muitos também têm ideia de que essas pessoas são perigosas ou sem vergonha, descompromissadas, e não adianta investir, não adianta passar remédio, porque vão perder ou vender para comprar droga. A experiência que temos é que são pessoas que fazem vínculo com muita facilidade e tivemos vários pacientes que terminaram o tratamento da tuberculose, mesmo vivendo na rua”, diz Valeska ao mencionar casos de pessoas que deram a volta por cima quando pareciam casos perdidos. “Não dá para prejulgar, determinar quem merece ou não investimento e esforços”, pensa a médica.
Valeska relata que a parceria com outras equipes das Clínicas da Família tem ajudado a diminuir o preconceito: “O contato faz com que a gente mude o olhar. O projeto é relativamente novo, está amadurecendo em direção a cada vez mais parcerias com as equipes de Saúde da Família que possam acolher essas pessoas no seu território e dividir um pouco esse cuidado”.
A médica conta que, nos quase quatro anos trabalhando com essa população, aprendeu a tratar da maneira mais saudável possível as pessoas que escolheram a rua como moradia: “Tem muita gente que não deseja sair da rua. Há pacientes que já levamos para casa várias vezes e, por vários motivos, preferiram voltar. As pessoas têm o seu tempo, não podemos esperar que elas mudem no momento que a gente quer”.
Venceslau Gonçalves, 54 anos, mora na rua há 15 anos e está tratando uma tuberculose com a equipe. “Tomo os remédios certinhos”, garante. O próximo passo é cuidar dos dentes. A rua, para ele, não é uma opção, mas uma necessidade: “Trabalho com faxina na Feira de São Cristóvão e faço outros serviços, catando latinha, mas não dá para pagar um aluguel. Morar na rua é muito perigoso. Se tivesse condições, já tinha saído há muito tempo”.
O dentista da equipe, José Delaney da Silveira, se emociona ao lembrar de uma das primeiras visitas que fez na rua, há três anos: “Estávamos debaixo de um viaduto e vi pessoas disputando restos de comida com animais. Voltei para a clínica e chorei muito. Foi aí que comecei a ter o respeito que deveria ter tido antes por essas pessoas. Passei realmente a enxergá-las e a me preocupar com elas. Aqui, tem histórias fantásticas”.
Uma parte do dia da equipe é dedicada às saídas na rua para divulgar o trabalho e cuidar de alguns pacientes que não querem ir à unidade de saúde. “Muitas dessas pessoas sofrem muita discriminação em alguns equipamentos de saúde”, comenta o enfermeiro da equipe, Marcelo Soares Costa.
“Fizemos o pré-natal de uma menina todo na rua, pois ela se recusava a vir até a clínica. Levávamos sonar, fita métrica e fazíamos o pré-natal em um sofá velho”, conta Marcelo. O bebê nasceu saudável e com ajuda da equipe e de parentes. A jovem mãe vive atualmente com a filha e está sem usar crack há quase um ano.
Marcelo se orgulha do trabalho que faz, não apenas em cuidar desse público, como também de informar e conscientizar essas pessoas de seus direitos: “Um paciente nosso estava muito debilitado na rua, mas não queria ir à clínica, pois dizia que não era para pessoas como ele. Ver esses usuários continuarem tratamentos e passarem a frequentar a clínica já é uma enorme vitória para mim”, conta.
Segundo o enfermeiro, as chances de as pessoas saírem da situação de rua aumentam quando há uma rede de apoio envolvida: “É uma crueldade achar que uma pessoa em situação de rua, em total desorganização, vai conseguir, sozinha, atingir o nível de organização que a gente tem. As políticas públicas precisam conversar mais, para olhar essas pessoas com mais cuidado e ajudá-las a se estruturar”.
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